Hamartiologia
- Pr. Wantuir Damasceno
- 17 de jun. de 2020
- 75 min de leitura

Hamartiologia é a ciência que estuda o pecado e as suas origens e consequências, ou seja, o estudo sistematizado daquele tema. O estudo do pecado e sua origem inevitavelmente incorre na questão da natureza do mal, assim como da relação deste com o homem.
A DOUTRINA DO PECADO
Louis Berkhof & Wayne Grudem
"A admirável promessa do Novo Testamento é que, assim como somos hoje como Adão (sujeitos à morte e ao pecado), também seremos como Cristo no futuro (moralmente puros, jamais sujeitos a morte de novo): "Assim como trouxemos a imagem do que é terreno, devemos trazer também a imagem do celestial" (1Co 15.49). A plena medida da nossa criação à imagem de Deus que não se vê na vida de Adão, que pecou, nem na nossa própria vida hoje, pois somos imperfeitos."
CRONOGRAMA DE AULA
01 Por que o Homem Foi Criado?
02 A Origem do Pecado!
03 O Caráter Essencial do Primeiro Pecado!
04 A Transmissão do Pecado!
05 O Pecado na Vida da Raça Humana!
06 A Punição do pecado
POR QUE O HOMEM FOI CRIADO?
1. Deus não precisava criar o homem, mas nos criou para a sua própria glória.
Deus nos criou para a sua própria glória.
Na análise da independência divina, observamos que Deus se refere aos seus filhos e filhas das extremidades da terra como aqueles “que criei para minha glória” (Is 43.7; cf. Ef 1.11-12). Portanto, devemos fazer “tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31).
Esse fato garante a relevância da nossa vida. Percebendo que Deus não precisava nos criar, e que não precisa de nós para nada, poderíamos concluir que nossa vida não tem a menor importância. Mas as Escrituras nos dizem que fomos criados para glorificar a Deus, indicando que somos importantes para o próprio Deus.
2. Qual o nosso propósito na vida?
O fato de Deus nos ter criado para a sua própria glória determina a resposta correta à Pergunta: “Qual o nosso propósito na vida?” Nosso propósito deve ser cumprir a meta Para que Deus nos criou: glorificá-lo. Quando falamos com respeito ao próprio Deus, eis aí um bom resumo do nosso propósito. Mas quando pensamos nos nossos próprios interesses, fazemos a feliz descoberta de que devemos nos alegrar em Deus e encontrar prazer no nosso relacionamento com ele. Diz Jesus: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundancia” (Jo 10.10). Davi diz a Deus: “Na tua presença há plenitude de alegria, na tua destra, delícias perpetuamente” (Sl 16.11)
C. O HOMEM À IMAGEM DE DEUS
1. O significado de “imagem de Deus”.
De todas as criaturas que Deus fez, só de uma delas, o homem, diz ter sido feita “Imagem de Deus”. O que isso significa? Podemos usar a seguinte definição: o fato de ser o homem à imagem de Deus significa que ele é semelhante a Deus e o representa.
2. A queda: a imagem de Deus se distorce, mas não se perde.
Podemos nos perguntar se é possível conceber que o homem, mesmo depois de pecar, ainda é como Deus. Essa pergunta é respondida ainda no início de Gênesis, onde Deus dá a Noé a autoridade de estabelecer a pena de morte para o homicídio logo depois da enchente; Deus diz: “Se algum derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem” (Gn 9.6). Mesmo sendo os homens pecadores, ainda resta neles bastante semelhança a Deus, tanto que assassinar outra pessoa (“derramar o sangue” uma expressão do Antigo Testamento que significa tirar a vida humana) é atacar a parte da criação que mais se parece com Deus, e revela uma tentativa ou desejo (se isso fosse possível ao homem) de atacar o próprio Deus.
3. A redenção em Cristo: a recuperação gradual da imagem de Deus.
No entanto, é animador abrir o Novo Testamento e ver que nossa redenção em Cristo significa que podemos, mesmo nesta vida, gradualmente crescer cada vez mais na semelhança de Deus. Por exemplo, Paulo diz que como cristãos temos uma nova natureza, que “se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Cl 3.10). Na medida que vamos crescendo no verdadeiro conhecimento de Deus, da sua Palavra e do seu mundo, começamos a pensar cada vez mais os pensamentos que o próprio Deus tem.
4. Na volta de Cristo: a completa restauração da imagem de Deus
A admirável promessa do Novo Testamento é que, assim como somos hoje como Adão (sujeitos à morte e ao pecado), também seremos como Cristo no futuro (moralmente puros, jamais sujeitos a morte de novo): “Assim como trouxemos a imagem do que terreno, devemos trazer também a imagem do celestial” (1Co 15.49). A plena medida da nossa criação à imagem de Deus não se vê na vida de Adão, que pecou, nem na nossa própria vida hoje, pois somos imperfeitos.
5. Aspectos específicos da nossa semelhança a Deus.
Embora tenhamos argumentado acima que seria difícil definir todos os aspectos em que somos semelhantes a Deus, podemos assim mesmo mencionar vários aspectos que nos revelam mais parecidos com Deus do que todo o restante da criação.
ASPECTOS MORAIS
1) Somos criaturas moralmente responsáveis pelos nossos atos perante Deus. Correspondente a essa responsabilidade, temos
2) Um senso íntimo de certo e errado que nos separa dos animais (que têm pouco ou nenhum senso inato de moralidade ou justiça, mas simplesmente reagem ao medo do castigo ou à esperança da recompensa). Quando agimos segundo os parâmetros morais divinos, nossa semelhança a Deus se espelha numa
3) Conduta santa e justa perante ele, mas, por outro lado dessemelhança a Deus se revela sempre que pecamos
ASPECTOS ESPIRITUAIS
4) Não temos somente corpos físicos, mas também espíritos imateriais, e podemos portanto agir de modos significativos no plano de existência imaterial, espiritual. Isso significa que temos
5) Uma vida espiritual que possibilita que nos relacionemos pessoalmente com Deus, que oremos a ele e o louvemos, e ouçamos as palavras que ele nos diz. Animal nenhum jamais passou uma hora absorto em oração intercessória pela salvação de um parente ou de um amigo! Vinculado a essa vida espiritual está o fato de possuirmos
6) Imortalidade; não cessaremos de existir, mas viveremos para sempre.
ASPECTOS MENTAIS.
7) -Temos a capacidade de raciocinar e pensar logicamente e de conhecer o que nos distingue do mundo animal. Os animais às vezes exibem conduta admirável na solução de complicações e problemas no mundo físico, mas certamente não se ocupam do raciocínio abstrato —não há algo como a “história da filosofia canina”, por exemplo, nem nenhum animal desde a criação evoluiu na compreensão de problemas éticos ou no uso de conceitos filosóficos, etc.
8) O uso que fazemos da linguagem complexa, abstrata, nos distingue dos animais. Pude pedir ao meu filho de quatro anos de idade que fosse pegar a chave de fenda grande e vermelha lá na caixa de ferramentas no porão. Mesmo que jamais a tivesse visto antes, poderia facilmente executar a tarefa, pois já conhecia os significados de “ir”, “pegar”, “grande”, “vermelha”, “chave de fenda”, “caixa de ferramentas” e “porão”.
9) Outra diferença intelectual entre seres humanos e animais é que temos uma noção de futuro distante, até um senso íntimo de que sobreviveremos à nossa morte física, senso que a muitos proporciona o desejo de tentar mostrar-se retos diante de Deus antes de morrer (Deus “pôs a eternidade no coração do homem”, Ec 3.11).
10) Nossa semelhança a Deus também se percebe na criatividade humana em áreas como a arte, a música e a literatura, e na engenhosidade científica e tecnológica. Não devemos pensar que essa criatividade se restringe aos músicos ou artistas mundialmente famosos; também se reflete de maneira muito bela nas peças ou brincadeiras inventadas pelas crianças, na destreza que há no preparo de uma refeição, na decoração de um lar ou no cultivo de um jardim, e na criatividade exibida por todo ser humano que conserta algo que simplesmente não funcionava bem. (11) No aspecto das emoções, nossa semelhança a Deus se percebe numa grande diferença de grau e complexidade. É claro que os animais também exibem algumas emoções (qualquer pessoa que já tenha tido um cachorro certamente se lembra de evidentes expressões de alegria, tristeza, medo de castigo diante do erro, raiva se outro animal invade seu “território”, contentamento e afeto, por exemplo). Mas na complexidade das emoções que vivenciamos, novamente somos bem diferentes do resto da criação.
ASPECTOS RELACIONAIS
Além da capacidade única de nos relacionarmos com Deus, há outros aspectos relacionais ligados à imagem de Deus.
12) Embora os animais sem sombra de dúvida tenham alguma noção de comunidade, a profundeza de harmonia interpessoal que se vivencia no casamento humano, numa família humana que funcione segundo os princípios divinos, e numa igreja em que a comunidade de crentes ande em comunhão com o Senhor e uns com os outros, é muito maior do que a harmonia interpessoal vivenciada pelos animais. Na nossas relações familiares e na igreja também somos superiores aos anjos, que não se casam nem geram filhos nem vivem na companhia dos filhos e filhas remidos de Deus.
13) No próprio casamento, espelhamos a natureza de Deus no fato de os homens e as mulheres gozarem de igualdade de importância mas diversidade de papéis, desde que Deus nos criou.
14) O homem é como Deus no seu relacionamento com o restante da criação. Especificamente, o homem recebeu o direito de reger a criação, e quando Cristo voltar receberá até autoridade para julgar os anjos (1Co 6.3; Gn 1.26, 28; Sl 8.6-8).
ASPECTOS FÍSICOS
Será que em algum aspecto o corpo humano faz também parte daquilo que significa ser criado à imagem de Deus? Certamente não devemos pensar que nosso corpo físico implica que Deus também tem um corpo, pois “Deus espírito” (Jo 4.24), e
Pecado concebê-lo ou retratá-lo de algum modo que sugira que ele tem um corpo material ou físico (ver Êx 20.4; Sl 115.3-8; Rm 1.23). Mas ainda que não devamos em hipótese nenhuma considerar que nosso corpo físico implica que Deus também tem corpo físico, será que assim mesmo em alguns aspectos nosso corpo não reflete algo do caráter do próprio Deus, constituindo portanto parte daquilo que significa ser criado à imagem de Deus? Isso é certamente verdadeiro em alguns aspectos.
15) -nosso corpo físico, em vários aspectos, reflete também algo do próprio caráter de Deus. Além disso, muitos movimentos físicos e demonstrações das habilidades recebidas de Deus se fazem por meio do uso do corpo. E certamente
16) a capacidade física que Deus nos dá de gerar e criar filhos semelhantes a nós (ver Gn 5.3) é um reflexo da própria capacidade divina de criar seres humanos semelhantes a ele
6. Nossa grande dignidade como portadores da imagem de Deus. Seria bom se refletíssemos mais frequentemente na nossa semelhança com Deus. É provável que fiquemos surpresos ao descobrir que quando o Criador do universo quis fazer algo. “Sua imagem”, algo mais semelhante a si do que todo o resto da criação, ele nos criou. Essa descoberta nos dá um profundo senso de dignidade e importância, pois passamos a refletir sobre a excelência de todo o restante da criação divina: o universo estrelado, a terra abundante, o mundo das plantas e dos animais e os reinos dos anjos são admiráveis, magníficos mesmo.
O HOMEM NO ESTADO DE PECADO
. A Origem do Pecado
O problema do mal que há no mundo sempre foi considerado um dos mais profundos problemas da filosofia e da teologia. É um problema que se impõe naturalmente à atenção do homem, visto que o poder do mal é forte e universal, é uma doença sempre presente na vida em todas as manifestações desta, e é matéria da experiência diária na vida de todos os homens. Os filósofos foram constrangidos a encarar o problema e a procurar uma resposta quanto à origem de todo mal, e particularmente do mal moral, que há no mundo. A alguns, pareceu uma parte de tal modo integrante da vida, que buscaram a solução na constituição natural das coisas. Outros, porém, estão convictos que o mal teve uma origem voluntária, isto é, que se originou na livre escolha do homem, quer na existência atual quer numa existência anterior. Estes acham -se bem mais perto da verdade revelada na Palavra de Deus.
A. Conceitos Históricos a Respeito da Origem do Pecado
Os mais antigos “pais da igreja”, assim chamados, não falam muito definidamente da origem do pecado, conquanto a ideia de que se originou na voluntária transgressão e queda de Adão no paraíso já achasse nos escritos de Irineu. Esta se tornou logo a ideia dominante na igreja, especialmente em oposição ao gnosticismo, que considerava o mal inerente à matéria e, como tal, produto do Demiurgo. O contato da alma humana com a matéria imediatamente a tornou pecaminosa. Essa teoria naturalmente priva o pecado do seu caráter voluntário e ético. Orígenes procurou manter isso com a sua teoria do pre-existencialismo. Segundo ele, as almas dos homens pecaram voluntariamente numa existência anterior e, portanto, entraram no mundo numa condição pecaminosa. Esta ideia platônica estava tão sobrecarregada de dificuldades que não pôde encontrar aceitação geral. Contudo, durante os séculos dezoito e dezenove foi defendida por Mueller e Rueckert, e por filósofos como Lessing, Schelling e J. H. Fichte. Em geral os chamados pais da igreja grega, do terceiro e do quarto século, mostravam certa inclinação para reduzir entre o pecado de Adão e o dos seus descendentes, ao passo que os “pais” da igreja latina ensinavam cada vez com maior clareza que a atual condição pecaminosa do homem encontra a sua explicação na primeira transgressão de Adão no paraíso. Os ensinos da igreja oriental culminaram finalmente no pelagianismo, que negava a existência de alguma relação vital entre ambos, enquanto que os da igreja ocidental chegaram ao seu ponto culminante no agostinianismo, que acentuava o fato de que somos culpados e corruptos em Adão. O semipelagianismo admitia a conexão adâmica, mas sustentava que isso explica apenas a corrupção do pecado, não a culpa. Durante a Idade Média reconhecia-se geralmente essa conexão. Às vezes era interpretada à maneira agostiniana, mas com mais freqüência, à maneira semipelagiana. Os reformadores compartilhavam os conceitos de Agostinho, e os socinianos os de Pelágio, enquanto que os arminianos moviam-se em direção ao semipelagianismo. Sob a influência do racionalismo e da filosofia evolucionista, a doutrina da queda do homem e de seus efeitos fatais sobre a raça humana aos poucos foi descartada. A ideia do pecado foi substituída pela do mal, e este mal era explicado de várias maneiras. Kant o considerava como uma coisa pertencente à esfera super-racional, que ele confessava não ter condições de explicar. Para Lebnitz, devia-se às necessárias limitações do universo. Schleiermacher via sua origem na natureza sentimental do homem, e Ritschl na ignorância humana, ao passo que o evolucionista o atribui à oposição das propensões inferiores à consciência moral em seu desenvolvimento gradativo. Barth fala da origem do pecado como o mistério da predestinação. O pecado originou-se na Queda, mas a Queda não foi um evento histórico; pertence à super-historia (Urgeschinchte). Adão foi de fato o primeiro pecador, mas a sua desobediência não pode ser considerada a causa do pecado do mundo. De algum modo, o pecado do homem está ligado à sua condição de criatura. A narrativa do paraíso apenas transmite ao homem a prazerosa informação de que ele não tem por que ser necessariamente um pecador.
B. Dados Bíblicos a Respeito da Origem do Pecado.
Na Escritura, o mal moral existente no mundo transparece claramente como pecado, isto é, como transgressão da lei de Deus. Nela o homem sempre aparece como transgressor por natureza, e surge naturalmente a questão: Como adquiriu ele essa natureza? Que revela a Bíblia sobre esse ponto?
1. NÃO SE PODE CONSIDERAR DEUS COMO O SEU AUTOR.
O decreto eterno de Deus evidentemente deu a certeza da entrada do pecado no mundo, mas não se pode interpretar isso de modo que faça de Deus a causa do pecado no sentido de ser Ele o seu autor responsável. Esta ideia claramente excluída pela Escritura. “Longe de Deus o praticar ele a perversidade, e do Todo- poderoso o cometer injustiça”, Jó 34.10. Ele o santo Deus, Is 6.3, e absolutamente não há falta de retidão nele, Dt 32.4; Sl 92.16. Ele não pode ser tentado pelo mal, e Ele próprio não tenta a ninguém, Tg 1.13. Quando criou o homem, criou-o bom e à Sua imagem. Ele positivamente odeia o pecado, Dt 25.16; Sl 5.4; 11.5; Zc 8.17; Lc 16.15, e em Cristo fez provisão para libertar do pecado o homem. À luz disso tudo, seria blasfemo falar de Deus como o autor do pecado. E por essa razão, todos os conceitos deterministas que representam o pecado como uma necessidade inerente à própria natureza das coisas devem ser rejeitados. Por implicação, eles fazem de Deus o autor do pecado e são contrários, não somente à Escritura, mas também à voz da consciência, que atesta a responsabilidade do homem.
2. O PECADO ORIGINOU-SE NO MUNDO ANGÉLICO.
A Bíblia nos ensina que, na tentativa de investigar a origem do pecado, devemos retornar à queda do homem, na descrição de Gn 3 e fixar a tenção em algo que sucedeu no mundo angélico. Deus criou um grande número de anjos, e estes eram todos bons, quando saíram das mãos do seu Criador, Gn 1.31. Mas ocorreu uma queda no mundo angélico, queda na qual legiões de anjos se apartaram de Deus. A ocasião exata dessa queda não é indicada, mas em João 8.44 Jesus fala do diabo como assassino desde o princípio ( kat’arches), e em 1 João 3.8 diz João que o diabo peca desde o princípio. A opinião é a deque a expressão kai’ archés significa desde o começo da história do homem. Muito pouco se diz sobre o pecado que ocasionou a queda dos anjos. Da exortação de Paulo a Timóteo, a que nenhum neófito fosse designado bispo, “para não suceder que se ensoberbeça, e incorra na condenação do diabo”, 1 Tm 3.6, podemos concluir que, com toda a probabilidade, foi o pecado do orgulho, de desejar ser como Deus em poder e autoridade. E esta ideia parece achar corroborarão em (Jd 6), onde se diz que os que caíram “não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio”. Não estavam contentes com a sua parte, com o governo e poder que lhes fora confiado. Se o desejo de serem semelhantes a Deus foi a tentação peculiar que sofreram, isto explica por que tentaram o homem nesse ponto particular.
3. A ORIGEM DO PECADO NA RAÇA HUMANA.
Com respeito à origem do pecado na história da humanidade, a Bíblia ensina que ele teve início com a transgressão de Adão no paraíso e, portanto, com um ato perfeitamente voluntário da parte do homem. O tentador veio do mundo dos espíritos com a sugestão de que o homem, colocando-se em oposição a Deus, poderia tornar-se semelhante a Deus. Adão se rendeu à tentação e cometeu o primeiro pecado, comendo do fruto proibido. Mas a coisa não parou aí, pois com esse primeiro pecado Adão passou a ser escravo do pecado. Esse pecado trouxe consigo corrupção permanente, corrupção que, dada a solidariedade da raça humana, teria efeito, não somente sobre Adão, mas também sobre todos os seus descendentes. Como resultado da Queda, o pai da raça só pôde transmitir uma natureza depravada aos pósteros. Dessa fonte não santa o pecado flui numa corrente impura passando para todas as gerações de homens, corrompendo tudo e todos com que entra em contato. Exatamente esse estado de coisas que torna tão pertinente a pergunta de Jó, “Quem dá imundícia poder tirar cousa pura? Ninguém”, Jó 14.4. Mas ainda isso não tudo. Adão pecou não somente como o pai da raça humana, mas também como chefe representativo de todos os seus descendentes; e, portanto, a culpa do seu pecado é posta na conta deles, pelo que todos são passíveis de punição e morte. É primariamente nesse sentido que o pecado de Adão é o pecado de todos. o que Paulo ensina em Rm 5.12: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”. A últimas palavras só podem significar que pecaram em Adão, e isso de modo que se tornaram sujeitos ao castigo e à morte. Não se trata do pecado considerado meramente como corrupção, mas como culpa que leva consigo o castigo. Deus adjudica a todos os homens a condição de pecadores culpados em Adão, exatamente como adjudica a todos os crentes a condição de justos em Jesus Cristo. É o que Paulo quer dizer, quando afirma: “pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida. Porque, como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também por meio da obediência de um só muitos se tornarão justos”, Rm 5.18,
C. A Natureza do Primeiro Pecado ou da Queda do Homem.
1. SEU CARÁTER FORMAL.
Pode-se dizer que, numa perspectiva puramente formal, o primeiro pecado do homem consistiu em comer ele da árvore do conhecimento do bem e do mal. Não sabemos que espécie de árvore era. Poderia ser uma tamareira ou uma figueira ou qualquer outra árvore frutífera. Nada havia de ofensivo no fruto da árvore como tal. Comê-lo não era pecaminoso per se, pois não era uma transgressão da lei moral. Quer dizer que não seria pecaminoso, se Deus não tivesse dito: “da arvore do conhecimento do bem e do mal não comeres”. Não há opinião unanime quanto ao motivo pelo qual a árvore foi denominada do conhecimento do bem e do mal. Uma opinião das mais comuns é que a árvore foi chamada assim porque o comer do seu fruto infundiria conhecimento prático do bem e do mal; mas é difícil sustentar isso face à exposição bíblica segundo a qual, comendo -o, o homem passaria a ser como Deus, no conhecimento do bem e do mal, pois Deus não comete pecado e, portanto, não tem conhecimento prático dele. É muito mais provável que a árvore foi denominada desse modo porque fora destinada a revelar (a) se o estado futuro do homem seria bom ou mal; e (b) se o homem deixaria que Deus lhe determinasse o que era bom ou mau, ou se encarregaria de determina-lo por si e para si. Mas, seja qual for a explicação que se dê do nome, a ordem de Deus para não comer do fruto da árvore serviu simplesmente ao propósito de pôr à prova a obediência do homem. Foi um teste de pura obediência, desde que Deus de modo nenhum procurou justificar ou explicar a proibição. Adão tinha que mostrar sua disposição para submeter a sua vontade à vontade do seu Deus com obediência implícita.
2. SEU CARÁTER ESSENCIAL E MATERIAL.
O primeiro pecado do homem foi um pecado típico, isto é, um pecado no qual a essência real do pecado se revela claramente. A essência desse pecado está no fato de que Adão se colocou em oposição a Deus, recusou -se a sujeitar a sua vontade à vontade de Deus de modo que Deus determinasse o curso da sua vida; e tentou ativamente tomar a coisa toda das mãos de Deus e determinar ele próprio o futuro. O homem, que não tinha absolutamente nenhum direito para alegar a Deus, e que só poderia estabelecer algum direito pelo cumprimento da condição da aliança das obras, desligou-se de Deus e agiu como se possuísse certos direitos contra Deus. A ideia de que o mandado de Deus era de fato uma infração dos direitos do homem parece que já estava na mente de Eva quando, em resposta à pergunta de Satanás, acrescentou as palavras, “nem tocareis nele”, Gn 3.3. Evidentemente ela quis salientar o fato de que a ordem não fora razoável. Partindo da pressuposição de que tinha certos direitos contra Deus, o homem promulgou o novo centro de operações, que viu nele próprio, onde agir contra o seu Criador. Isto explica o seu desejo de ser como Deus e a sua dúvida quanto às boas intenções de Deus ao dar-lhe a ordem. Naturalmente podem distinguir-se diferentes elementos do seu primeiro pecado. No intelecto revelou-se como incredulidade e orgulho, na vontade, como o desejo de ser como Deus, e nos sentimentos, como uma ímpia satisfação ao comer do fruto proibido.
D. O Primeiro Pecado ou a Queda como Ocasionada pela Tentação.
1. OS PROCEDIMENTOS DO TENTADOR. A queda do homem foi ocasionada pela tentação da serpente, que semeou na mente do homem as sementes da desconfiança e da descrença. Embora indubitavelmente a intenção do tentador fosse levar Adão, o chefe da aliança, a cair, não obstante dirigiu-se a Eva, provavelmente porque
(a) não exercia a chefia da aliança e, portanto, não teria o mesmo senso de responsabilidade;
(b) não recebeu diretamente a ordem de Deus, mas apenas indiretamente e, por conseguinte, seria mais suscetível de ceder à argumentação e duvidar; e
(c) seria sem dúvida o instrumento mais eficiente para alcançar o coração de Adão. O curso seguido pelo tentador é bem claro. Em primeiro l ugar, ele semeia as sementes da dúvida pondo em questão as boas intenções de Deus e insinuando que Sua ordem era realmente um a violação da liberdade e dos direitos do homem. Quando nota, pela reação de Eva, que a semente tinha criado raiz, acrescenta as sementes da descrença e do orgulho, negando que a transgressão resultaria na morte e dando a entender claramente que a ordem divina fora motivada pelo objetivo egoísta de manter o homem em sujeição. Ele afirma que, ao comer da árvore, o homem passaria a ser como Deus. As elevadas expectativas assim geradas induziram Eva a observar com atenção a árvore, e quanto mais olhava, melhor lhe parecia o fruto. Finalmente, o desejo lhe moveu a mão, e ela comeu do fruto e também o deu ao marido, e ele comeu.
2- INTERPRETAÇÃO DA TENTAÇÃO. Frequentes tentativas têm sido feitas, e continuam sendo feitas, para explicar a Queda negando-lhe o caráter histórico. Alguns acham que toda a narrativa de Gênesis 3 é uma alegoria que representa figuradamente a auto depravação do homem e sua mudança gradativa. Barth e Brunner consideram a narrativa do estado original e da queda do homem um mito. Para eles, tanto a Criação como a Queda pertencem, não à história, mas ao que denominam super-história (Urgeschichte) e, daí, ambas são igualmente incompreensíveis. A narrativa dada em Gênesis ensina-nos meramente que, embora o homem seja atualmente incapaz de realizar algum bem e esteja sujeito à lei da morte, não há por que ser necessariamente assim. É possível ao homem livrar -se do pecado e da morte por uma vida de comunhão com Deus. Tal é a vida retratada para nós na narrativa sobre o paraíso, e ela prefigura a vida que nos é assegurada naquele de quem Adão foi apenas um tipo, a saber Cristo. Mas não é a classe de vida que o homem vive agora, ou que sempre viveu, desde o início da história. O paraíso não é uma certa localidade que podemos assinalar mas existe onde Deus é Senhor e o homem e as demais criaturas Lhe são sujeitos voluntariamente. O paraíso do passado está além dos limites da história humana. Diz Barth: “Quando a história do homem com e ou; quando o tempo do homem teve seu começo; quando o tempo e a história começaram onde o homem tem a primeira e a última palavra, o paraíso desapareceu”. Do mesmo teor o que Brunner fala, quando diz: “Assim como com respeito Criação perguntamos em vão: Como, quando e onde aconteceu? Também se dá com a Queda. Tanto a Criação como a Queda estão por trás da realidade histórica visível”. Outros, que não negam o caráter histórico da narrativa de Gênesis, afirmam que pelo menos a serpente não deve ser considerada como um animal literal, mas apenas como um nome ou um símbolo da cobiça, do desejo sexual, do raciocínio pecaminoso, ou de Satanás. Ainda outros asseveram que, para dizer o mínimo, o falar da serpente deve ser entendido figuradamente. Mas todas estas interpretações, e outras que ainda, são insustentáveis à luz da Escritura. As passagens que precedem e se seguem a Gn 3.1-7 manifestam evidente propósito de construir uma pura e simples narrativa histórica. Pode-se provar que assim foram entendidas pelos escritores bíblicos, mediante muitas referências, como por exemplo, Jó 31.33; Ec 7.29; Is 43.27;Os 6.7; Rm 5.12, 18, 19; 1 Co 5.21; 2 Co 11.3; 1 Tm 2.14, e, portanto, não temos o direito de afirmar que os referidos versículos, que constituem parte integrante da narrativa, devem ser interpretados figuradamente. Além disso, certamente a serpente é considerada como um animal em Gn 3.1, e não daria bom sentido substituir “serpente” por “Satanás”. O castigo de que fala Gn 3.14, 15 pressupõe uma serpente literal, e Paulo não a entende doutro modo, em 2 Co 11.3. E, apesar de poder-se entender num sentido figurado a serpente falar por meio de gestos astutos, não parece possível imaginá-la mantendo dessa maneira a conversação registrada em Gn 3. A transação toda, a fala da serpente inclusive, sem dúvida acha sua explicação na operação de algum poder sobrenatural, não mencionado em Gn 3. A Escritura dá a entender claramente que a serpente foi apenas um instrumento de Satanás, e que Satanás foi o real tentador, que agiu na serpente e por meio dela, como posteriormente agiu em homens e em porcos, Jo 8.44; Rm 16.20;2 Co 11.3; Ap 12.9. A serpente foi um instrumento próprio para Satanás, pois ele é a personificação do pecado, e a serpente simboliza o pecado (a) em sua natureza astuta e enganosa, e (b) em sua picada venenosa, com a qual mata o homem.
3. A QUEDA PELA TENTAÇÃO E A SALVABILIDADE DO HOMEM. Tem -se sugerido que o fato de que a queda do homem foi ocasionada pela tentação proveniente de fora, pode ser uma das razões pelas quais o homem é salvável, diversamente dos anjos, que não estiveram sujeitos a uma tentação externa, mas caíram pelas incitações da sua própria natureza interior. Nada decerto se pode dizer sobre este ponto, porém. Mas, seja qual for o significado da tentação a este respeito, certamente não será suficiente para explicar como um ser santo como Adão pôde cair em pecado. É-nos impossível dizer como a tentação pôde encontrar um ponto de contato numa pessoa santa. E mais difícil de explicar ainda, é a origem do pecado no mundo angélico.
E. A Explicação Evolucionista da Origem do Pecado.
Naturalmente, uma teoria evolucionista coerente não pode admitir a doutrina da Queda, e bom número de teólogos modernistas a rejeitaram como incompatível com o evolucionismo. É verdade que já alguns teólogos muito conservadores como Denney, Gore e Orr que aceitam, embora com reserva, a explicação evolucionista da origem do homem, e acham que ela deixa lugar para a doutrina da Queda nalgum sentido da palavra. Mas é significativo que todos eles concebem a narrativa da Queda como uma representação mítica ou alegórica de uma experiência ética ou de uma catástrofe moral realmente sucedida no princípio da história que resultou em sofrimento e morte. Significa que eles não aceitaram a narrativa da Queda como um relato histórico do que realmente sucedeu no jardim do Éden. Em suas Conferências Hulseanas sobre A Origem e a Propagação do Pecado, Tennant fez um relato minucioso e interessante da origem o pecado segundo o ponto de vista evolucionista. Ele se deu conta de que o homem não poderia herdar o pecado dos seus antepassados animais, visto que estes não tinham pecado algum. Quer dizer que os impulsos, propensões, desejos e qualidades que o homem herdou dos animais inferiores não podem ter o nome de pecado. Segundo a sua avaliação, eles constituem apenas o material do pecado, e não se tornam pecados de fato enquanto a consciência moral não se desperta no homem, e se permite que eles assumam o controle na determinação das ações do homem, contrariamente à voz da consciência e às sanções éticas. Ele sustenta que, no curso do seu desenvolvimento, o homem foi-se tornando aos poucos um ser ético, tendo uma vontade indeterminada, sem explicar como tal vontade é possível onde prevalece a lei da evolução, e considera essa vontade como a causa única o pecado. Define o pecado “como uma atividade da vontade expressa em pensamentos, palavras ou atos contrários à consciência individual, à sua noção do que o bem e o direito, o conhecimento da lei moral e a vontade de Deus”. Conforme a raça humana se desenvolve, os padrões éticos se tornam mais rigorosos, e a hediondez do pecado aumenta. O ambiente pecaminoso torna mais difícil ao homem refrear-se quanto ao pecado. Esta opinião de Tennant não deixa lugar para a queda do homem no sentido geralmente aceito da palavra. Na verdade, Tennant repudia explicitamente a doutrina da queda, reconhecida em todas as grandes confissões históricas da igreja. Diz W. H. Johnson: “Os críticos de Tennant estão de acordo em que a sua teoria não deixa espaço para o clamor do coração contrito que, não somente confessa atos isolados de pecado, mas também declara: ‘Fui formado em iniquidade; há uma lei de morte em meus membros’
F. Os Resultados do Primeiro Pecado.
A primeira transgressão do homem teve os seguintes resultados:
1. O concomitante imediato do primeiro pecado e, portanto, dificilmente um resultado dele no sentido estrito da palavra, foi a depravação total da natureza humana. O contágio do seu pecado espalhou-se imediatamente pelo homem todo, não ficando sem ser tocada nenhuma parte da sua natureza, mas contaminando todos os poderes e faculdades do corpo e da alma. Esta completa corrupção do homem é ensinada claramente na Escritura, Gn 6.5; Sl 14.3; Rm 7.18. A depravação total de que se trata aqui não significa que a natureza humana ficou logo tão completamente depravada como teria a possibilidade de vir a ser. Na vontade essa depravação manifestou –se como incapacidade espiritual.
2. Imediatamente relacionada com a matéria do item anterior, deu -se a perda da comunhão com Deus mediante o Espírito Santo. Esta é simplesmente o reverso da completa corrupção mencionada no parágrafo anterior. Ambos podem ser combinados numa única declaração, de quero homem perdeu a imagem de Deus no sentido de retidão original. Ele rompeu com a verdadeira fonte de vida e bem-aventurança, e o resultado foi uma condição de morte espiritual, Ef 2.1, 5, 12;3. Esta mudança da condição real do homem refletiu-se também em sua consciência. Houve, primeiramente, uma consciência da corrupção, revelando-se no sentido de vergonha, e no esforço que os nossos primeiros pais fizeram para cobrir a sua nudez. E depois houve uma consciência de culpa, que achou expressão numa consciência acusadora e no temor de Deus que isso inspirou.
4. Não somente a morte espiritual, mas também a morte física resultou do primeiro pecado do homem. De um estado de posse non mori (ser capaz de não morri) desceu a um estado de non possenon mori. (Capacidade de morrer) Havendo pecado, ele foi condenado a retornar ao pó do qual fora tomado, Gn 3.19. Diz-nos Paulo que por um homem a morte entrou no mundo e passou a todos os homens, Rm 5.12, e que o salário do pecado é a morte, Rm 6.23.
5. Esta mudança redundou também numa necessária mudança de resistência. O homem foi expulso do paraíso, porque este representava o lugar da comunhão com Deus, e era símbolo da vida mais completa e de uma bem-aventurança maior reservadas para ele, se continuasse firme. Foi-lhe vedada a árvore da vida, porque esta era o símbolo da vida prometida na aliança das obras.
II. O Caráter Essencial do Primeiro Pecado
O pecado é um dos mais tristes fenômenos da vida humana, e também o mais comum. Faz parte da experiência comum da humanidade e, portanto, impõe-se à atenção de todos os que não fecham deliberadamente os olhos para as realidades da vida humana. Há os que sonham por algum tempo com a bondade essencial do homem e falam com indulgência das palavras e ações isoladas que não se enquadram nos padrões éticos da boa sociedade, descrevendo -as como simples paixões e fraquezas,pelas quais o homem não é responsável e as quais prontamente cedem a medidas corretivas; mas, com o correr do tempo, com o fracasso de todas as medidas de reforma externa, e com a verificação de que a supressão de um mal só serve para liberar outro, essas pessoas ficam inevitavelmente desiludidas. Tomam consciência do fato de que estiveram lutando meramente com os sintomas de uma doença arraigada profundamente e que defrontam, não apenas o problema dos pecados, isto é, dos atos pecaminosos isolados, mas o problema muito maior e mais profundo do pecado, de um mal inerente à natureza humana. É exatamente o que estamos começando a presenciar na época atual. Muitos modernistas de hoje não hesitam em dizer que a doutrina de Rousseau a respeito da bondade inerente do homem evidenciou-se como um dos mais perniciosos ensinos do período do Iluminismo, e agora Horton, que pleiteia uma teologia realista e acredita que esta requer a aceitação princípios marxistas, diz:“ Creio que o cristianismo ortodoxo representa uma profunda compreensão de todo o predicamento humano. Creio que a dificuldade humana básica é aquela perversão da vontade, aquela traição contra a vontade divina, que se chama pecado; e creio que o pecador é, num certo sentido, uma enfermidade racial, transmissível de geração a geração. Ao afirmar essas coisas, os ‘pais’ cristãos e os reformadores protestantes falavam como realista, e podiam ter coletado pilhas de provas empíricas para suporte das suas ideias”. Em vista do fato de que o pecado é real e ninguém pode livrar-se dele na presente existência, não admira que os filósofos, como os teólogos, se decidiram a atracar-se com o problema do pecado, conquanto na filosofia seja mais conhecido como o problema do mal que do pecado, Consideramos abreviadamente algumas das mais importantes teorias filosóficas sobre o mal, antes de expormos a doutrina escriturística do pecado.
A. Teorias Filosóficas a Respeito da Natureza do Mal.
1. TEORIA DUALISTA. Esta é uma das teorias que foram comuns na filosofia grega. Na formado gnosticismo, conseguiu penetrar na Igreja Primitiva. Admite a existência de um princípio eterno do mal, e sustenta que no homem o espírito representa o princípio do bem, e corpo, o do mal. É objetável por várias razões:
a) É posição filosoficamente insustentável que haja fora de Deus algo que seja eterno e independente da Sua vontade.
b) Essa teoria retira do pecado o seu caráter ético, fazendo dele uma coisa puramente física e independente da vontade humana, e, deste modo, destrói na verdade a ideia de pecado,
c) Também elimina a responsabilidade do homem, apresentando o pecado como uma necessidade ou inevitabilidade física. Segundo essa teoria, o único meio de escarparmos do pecado consiste em livrar-nos do corpo.
2. TEORIA DE QUE O PECADO É MERA PRIVAÇÃO. De acordo com Leibnitiz, o presente mundo é o melhor mundo possível. A existência do pecado deve ser considerada inevitável. O pecado não pode ser atribuído à acaso pessoal de Deus e, portanto, deve ser considerado como simples negação ou privação, sem necessidade de nenhuma causa eficiente. As limitações da criatura o tornam inevitável. Essa teoria torna o pecado um mal necessário, desde que as criaturas são necessariamente limitadas, e o pecado é uma consequência inevitável dessa limitação. Sua tentativa de evitar fazer de Deus o autor do pecado não tem bom êxito pois, mesmo que o pecado fosse apenas uma negação sem nenhuma causa eficiente, Deus seria, não obstante, o autor da limitação da qual ele resultaria. Além disso, a teoria tende a obliterar a distinção entre o mal moral e o mal físico, visto que descreve o pecado como pouco mais que um infortúnio sobrevindo ao homem. Consequentemente, propende a embotar no homem a noção do mal ou da corrupção do pecado, destruir o sentimento de culpa e abrogar a responsabilidade moral do ser humano.
3. TEORIA DE QUE O PECADO É UMA ILUSÃO. Para Spinoza, como para Leibnitiz, o pecado é simplesmente um defeito, uma limitação da qual o homem está cônscio; mas enquanto Leibnitiz considera a noção do mal, que surge dessa limitação, como necessária, Spinoza sustenta que a resultante consciência do pecado deve-se simplesmente à inadequação do conhecimento do homem, que não consegue ver tudos ub specie aeternitatis, isto é, em unidade com a eterna e infinita essência de Deus. Se o conhecimento do homem fosse adequado, de sorte que visse tudo em Deus, ele não teria nenhuma ideia do pecado; este seria simplesmente inexistente para ele. Mas essa teoria, que apresenta o pecado como uma coisa puramente negativa, não explica os seus terríveis resultados que a experiência universal da humanidade atesta da maneira mais convincente. Levada adiante coerentemente, ela abroga todas as discinéticas e reduz conceitos como “caráter moral” e “conduta moral” a frases sem sentido.
De fato, reduz toda a vida do homem a uma ilusão: seu conhecimento, sua experiência, o testemunho da consciência, e assim por diante, pois todo o seu conhecimento é inadequado. Além disso, vai contra a experiência da humanidade, que atesta que os mais inteligentes são, muitas vezes, os maiores pecadores, sendo Satanás o maior de todos.
4. TEORIA DE QUE O PECADO É FALTA DE CONSCIÊNCIA DE DEUS, PELO FATO DE ESTAR A NATUREZA HUMANA PRESA AOS SENTIDOS. É o conceito de Schleiermacher. Segundo ele, a consciência do pecado, da parte do homem, depende da sua consciência de Deus. Quando o senso da realidade de Deus se desperta no homem, imediatamente toma consciência da oposição da sua natureza inferior àquela noção. Esta oposição segue-se da própria constituição de seu ser, de sua natureza sensorial, presa aos sentidos, da ligação da alma com um organismo físico. É, pois, uma imperfeição inerente, mas uma imperfeição que o homem sente como pecado e culpa. Contudo, isso não faz de Deus o autor do pecado, uma vez que o homem concebe erroneamente essa imperfeição como pecado. O pecado não tem existência objetiva, mas existe somente na consciência do homem. Mas essa teoria declara o homem constitutivamente mau. O mal estava presente no homem mesmo em seu estado original, quando sua consciência de Deus não era suficiente forte para dominar a natureza sensorial do homem, presa aos sentidos. Isso está em flagrante oposição à Escritura, quando esta sustenta que o homem erroneamente julga que esse mal é o pecado e, assim, entende o pecado e a culpa como puramente subjetivos. E embora Schleiermacher queira evitar esta conclusão, faz de Deus o autor do pecado, responsável por este, pois Ele é o Criador da natureza sensorial do homem. A teoria repousa também numa incompleta indução dos fatos, visto que não leva em conta o fato de que muitos dos mais odiosos pecados do homem não pertencem à sua natureza física, e, sim, à sua natureza espiritual, como por exemplo a avareza, a inveja, o orgulho, a malícia, e outros.
Além disso, leva às conclusões mais absurdas como, por exemplo, a de que o ascetismo, enfraquecendo a natureza sensorial, o domínio dos sentidos, necessariamente enfraquece a força do pecado; a de que o homem vai ficando menos pecador conforme se vão enfraquecendo os seus sentidos; a de que o único redentor é a morte; e a de que os espíritos desencarnados ou incorpóreos, o diabo inclusive, não tem nenhum pecado.
5. TEORIA DO PECADO COMO FALTA DE CONFIANÇA EM Deus E COMO OPOSIÇÃO AO SEU REINO, DEVIDO À IGNORÂNCIA. Como Schleiermacher, Ritschl também dá ênfase ao fato de que o pecado é entendido somente do ponto de vista da consciência cristã. Os que se acham fora dos limites da religião cristã, e os que estão ainda alheios à experiência da redenção, não têm nenhum conhecimento do pecado. Sob a influência da obra redentora de Deus, o homem toma consciência da sua falta de confiança em Deus e da sua oposição ao reino de Deus, que constitui o bem supremo. O pecado não é determinado pela atitude do homem para com a lei de Deus, mas por sua relação com o propósito de Deus, que visa ao estabelecimento do Reino. O homem imputa a si próprio, como culpa, o seu fracasso em não conseguir tornar seu propósito de Deus, mas Deus o considera apenas como ignorância e, porque ignorância, é imperdoável. Esse conceito de Ritschal lembra-nos, por contraste, a máxima grega: Conhecimento é virtude, Absolutamente não faz justiça à posição escriturística de que o pecado é, acima de tudo, transgressão da lei de Deus e, portanto, torna o homem culpado à vista de Deus e merecedor de condenação. Além disso, a ideia de que o pecado é ignorância vai contra a voz da experiência cristã. O homem que leva sobre si o fardo o senso de pecado, certamente não pensa nisso daquele modo. Também é grato porque não somente os pecados cometidos na ignorância são doáveis, mas igualmente todos os demais, com a única exceção da blasfêmia contra o Espírito Santo.
6. TEORIA DE QUE O PECADO É EGOÍSMO. Assumem essa posição Mueller e A H. Strong, entre outros. Alguns que assumem essa posição concebem o egoísmo apenas como o oposto do altruísmo ou da generosidade; outros o entendem como a escolha do ego, em vez de Deus, como o supremo objeto do amor. Ora, essa teoria, especialmente quando concebe o egoísmo como a colocação do ego no lugar de Deus, é, de longe, a melhor das teorias mencionadas. Todavia, dificilmente se pode dizer que é satisfatória. Embora todo egoísmo seja pecado, e haja um elemento de egoísmo em todo pecado, não se pode dizer que o egoísmo é a essência do pecado. Só se pode definir propriamente o pecado com referência à lei de Deus, referência completamente ausente da definição em foco. Além disso, há muitos pecados nos quais o egoísmo está longe de ser o princípio dominante. Quando um pai é abatido pela pobreza e vê a esposa e os filhos esmorecidos por falta de alimento, e, em, seu desesperado desejo de socorrê -los acaba recorrendo ao roubo, dificilmente se pode dizer que isso é puro egoísmo. Até pode ser que a ideia de ego estivesse inteiramente ausente. A inimizade para com Deus, a dureza de coração, a impenitência e a incredulidade são pecados hediondos, mas não podem ser simples mente classificados como egoísmo. E certamente a ideia de que toda virtude é desinteresse próprio ou generosidade, o que parece constituir um necessário corolário da teoria que estamos considerando, não é válida, pelo menos numa das suas formas. Um, ato deixa de ser virtuoso quando a sua realização cumpre e satisfaz alguma exigência da nossa natureza. Ademais, a justiça, a fidelidade, a humanidade, a clemência, a paciência e outras virtudes podem ser cultivadas ou praticadas, não como formas de generosidade, mas como virtudes inerentemente excelentes, não meramente pela promoção da felicidade de outros, mas pelo que elas são em si mesmas.
7. TEORIA DE QUE O PECADO CONSISTE NA OPOSIÇÃO DAS PROPENSÕES INFERIORES DA NATUREZA HUMANA A UMA CONSCIÊNCIA MORAL DESENVOLVIDA GRADATIVAMENTE. Essa opinião foi desenvolvida, como foi assinalado no item anterior, por Tennant, em suas Conferências Hulseanas. É a doutrina do pecado elaborado de acordo com a teoria evolucionista. Os impulsos naturais e as qualidades herdadas, derivadas dos animais inferiores, compõem o material do pecado, mas não se tornam pecado concretamente enquanto não forem tolerados contrariamente ao senso moral da humanidade em seu desenvolvimento gradual. As teorias de McDowall e Fiske seguem linhas semelhantes. A teoria apresentada por Tennant hesita um tanto entre a ideia bíblica sobre o homem e a ideia apresentada pela teoria evolucionista, inclinando-se ora para um lado, ora para outro. Pressupõe que o homem tinha livre arbítrio – vontade livre – mesmo antes do despertar da sua consciência moral, de modo que podia fazer uma escolha quando era posto diante de um ideal moral; mas não explica como se pode conceber uma vontade livre e indeterminada num processo de evolução. A teoria limita o pecado às transgressões da lei moral cometidas com clara consciência de um ideal moral e, portanto, condenadas como más pela consciência. É, na verdade, apenas a velha ideia pelagiana do pecado enxertada na teoria evolucionista e, portanto, está aberta a todas as objeções que pesam sobre o pelagianismo. O defeito radical dessas teorias todas é que procuram definir o pecado sem levar em consideração que o pecado é essencialmente o abandono de Deus, a oposição a Deus e a transgressão da lei de Deus. Sempre se deve definir o pecado em termos da relação do homem com Deus e Sua vontade como vem expressa na lei moral.
B. A Ideia Bíblica do Pecado.
Ao dar a idéia bíblica do pecado, é necessário chamar a atenção para diversas particularidades.
1. O PECADO É O MAL NUMA CATEGORIA ESPECÍFICA. Hoje em dia ouvimos falar muito do mal, e relativamente pouco do pecado; e isso é muito enganoso. Nem todo mal é pecado. Não se deve confundir o pecado com o mal físico, com aquilo que é danoso ou calamitoso. É possível falar, não só do pecado mas da doença, como um mal, mas, então, a palavra “mal” empregada em dois sentidos totalmente diversos. Acima da esfera física está a esfera ética, na qual é aplicável o contraste entre o bem moral e o mal moral, e é somente nesta esfera que podemos falar de pecado. E mesmo nesta esfera não desejável substituir a palavra “pecado” pela palavra “mal” sem acrescentar algum qualificativo, pois aquela mais especifica do que esta. O pecado um mal moral. Muitos nomes empregados na Escritura para designar o pecado indicam o seu teor moral. Chatta’th dirige a atenção para o pecado como feito que era o alvo e que consiste num desvio do caminho certo.’Avel e’avon indicam que é uma falta de integridade e retidão, uma saída da vereda designada. Pesha’ refere-se a ele como uma revolta ou uma recusa de sujeição à autoridade legitima, uma positiva transgressão da lei, e um rompimento da aliança. Eresha’ o assinala como uma fuga ímpia e culposa da lei. Ademais, é designado como culpa por’asham, como infidelidade e traição por ma’al, como vaidade por ’aven e como perversão ou distorção da natureza (torção) por ’avah. As palavras neo testamentárias correspondentes, como hamartia, adikia, parabasis, paraptoma, anomia, para nomia e outras, indicam as mesmas ideias. Em vista do emprego dessas palavras e do modo pelo qual a Bíblia normalmente fala do pecado, não se pode duvidar do seu teor ético. Não é uma calamidade que sobreveio inopinadamente ao homem, envenenou sua vida e arruinou sua felicidade, mas um curso que o homem decidiu seguir deliberadamente e que leva consigo miséria inaudita. Fundamentalmente não é uma coisa passiva, como uma fraqueza, um defeito, ou uma imperfeição pela qual não podemos ser responsabilizados, mas uma ativa oposição a Deus, e uma positiva transgressão da Sua lei, constituindo culpa. O pecado é o resultado de uma escolha livre, porém má, do homem. Este é o ensino claro da Palavra de Deus, Gn 3.1-6; Is 48.8; Rm 1.18-32; 1 Jo 3.4. A aplicação da filosofia evolucionista ao estudo do Velho Testamento levou alguns eruditos à convicção de que a ideia ética do pecado não se desenvolveu até o tempo dos profetas, mas esta opinião não encontra apoio na maneira como os mais antigos livros da Bíblia falam do pecado.
2. O PECADO TEM CARÁTER ABSOLUTO. Na esfera ética, o constante entre o bem e o mal é absoluto. Não há condição neutra entre ambos. Apesar de indubitavelmente haver graus nos dois, não há graduação entre o bem e o mal. A transição de um para o outro não é de caráter quantitativo, e sim, qualitativo. Um ser moral bom não se torna mau por uma simples diminuição da sua bondade, mas somente por uma mudança qualitativa radical, por um volver ao pecado. O pecado não é um grau menor de bondade, mas mal positivo. Isso é ensinado claramente na Bíblia. Quem não ama a Deus é, por isso, caracterizado como mau. A Escritura não reconhece nenhuma posição de neutralidade. Ela concita o ímpio a voltar -se para a retidão e, às vezes, falado justo como caindo no mal; mas não contem nem uma só indicação de que um ou outro alguma vez fica numa posição neutra. O homem está do lado certo ou do lado errado, Mt 10.32, 33; 12.30; Lc 11.23; Tg 2.10.
3.O PECADO SEMPRE TEM RELAÇÃO COM DEUS E SUA VONTADE. Os mais antigos teólogos compreendem que é impossível ter uma correta concepção do pecado sem vê-lo em relação a Deus e Sua vontade e, portanto, acentuavam este aspecto e normalmente falavam do pecado como “falta de conformidade com a lei de Deus”. Sem dúvida, uma correta definição formal do pecado. Mas surge a questão: Qual é precisamente o conteúdo material da lei? Que é ela exige? Respondendo-se esta questão, será possível determinar o que é o pecado num sentido material. Ora, não há dúvida de que a grande e central exigência da lei é o amor a Deus. E se ponto de vista material, a bondade consiste em amar a Deus, o mal moral consiste no oposto. É a separação de Deus, a oposição a Deus, o ódio a Deus, e isto se manifesta em constante transgressão da lei de Deus, em pensamento, palavra e ato. As seguintes passagens mostram claramente mente que a Escritura vê o pecado em relação a Deus e Sua lei, quer como lei escrita nas tabuas do coração, quer como dada por meio de Moises, Rm 1.32; 2.12-14; 4.15; Tg 2.9; 1 Jo4. O PECADO INCLUI A CULPA E A CORRUPÇÃO. A culpa é o estado de merecimento da condenação ou de ser passível de punição pela violação de uma lei ou de uma exigência moral. Ela expressa a relação do pecado com a justiça ou da penalidade com a lei. Mesmo assim, porém, apalavra tem duplo sentido. Pode indicar uma qualidade inerente ao pecador, a saber, o seu demérito, más qualidades ou cumplicidade, que o faz merecedor de castigo. Dabney fala disso como “culpa potencial”. Inseparável do pecado, jamais se encontra em quem não é pessoalmente pecador, e é permanente, de modo que, uma vez estabelecida, não pode ser removida pelo perdão. Mas também pode indicar a obrigação de satisfazer a justiça, pagar a penalidade do pecado – a “culpa de fato”, como lhe chama Dabney. Não inerente ao homem, mas é o estatuto penal do legislador, que fixa a penalidade da culpa. Pode ser removida pela satisfação pessoal ou vicária das justas exigências da lei. Embora muitos neguem que o pecado inclui culpa, essa negação não se harmoniza com o fato de que o pecado é ameaçado com castigo, e de fato o recebe, e evidentemente contradiz claras afirmações da escritura, Mt 6.12; Rm3.19; 5.18; Ef 2.3. Por corrupção entendemos a corrosiva contaminação inerente, a que todo pecador está sujeito. É uma realidade na vida de todos os indivíduos. É inconcebível sem a culpa, embora a culpa, como incluída numa relação penal, seja concebível sem a corrupção imediata. Mas é sempre seguida pela corrupção. Todo aquele que é culpado em Adão, também nasce com uma natureza corrupta, em consequência. Ensina-se claramente a doutrina da corrupção do pecado em passagens como, Jó 14.4; Jr 17.9; Mt 7.15-20; Rm 8.5-8; Ef 4.17-19.5. O PECADO TEM SUA SEDE NO CORAÇÃO. O pecado não reside nalguma faculdade d a alma, mas no coração, que na psicologia da Escritura é o órgão central da alma, onde estão as saídas da vida. E desse centro, sua influência e suas operações espalham -se para o intelecto, a vontade, as emoções – em suma, a todo homem, seu corpo inclusive. Em seu estado pecaminoso, o homem completo é objeto de desprazer de Deus. Há um sentido em que se pode dizer que o pecado teve origem na vontade do homem, caso em que a vontade não designa uma volição efetiva, na medida em que isto sucede com a natureza volitiva do homem. Havia uma tendência do coração, subjacente à volição efetiva, quando o pecado entrou no mundo. Esta maneira de ver está em perfeita harmonia com as descrições bíblicas, em passagens como as seguintes: Pv 4.23; Jr 17.9; Mt 15.19, 20; Lc 6.45; Hb 3.12.6. O PECADO NÃO CONSISTE APENAS DE ATOS MANIFESTOS. O pecado não consiste somente de atos patentes, mas também de hábitos pecaminosos e de uma condição pecaminosa da alma. Estes três âmbitos se inter-relacionam do seguinte modo: O estado pecaminoso á a baseados hábitos pecaminosos, e estes se manifestam em ações pecaminosas. Também há verdade, porém, na alegação de que os atos pecaminosos repetidos levam ao estabelecimento de hábitos pecaminosos. As ações e as disposições pecaminosas do homem devem ser atribuídas a uma natureza corrupta, que as explica. As passagens citadas no parágrafo anterior consubstanciam esta opinião, pois provam com clareza que o estado ou a condição do homem é completamente pecaminosa. E se for necessário levantar a questão sobre se os pensamentos e os sentimentos do homem natural, chamado “carne” na Escritura, devam ser considerados como constituindo pecado, poder-se-ia responder indicando passagens como as seguintes: Mt 5.22, 28; Rm 7.7; Gl 5.17, 24, e outras. Em conclusão, pode-se dizer que se pode definir o pecado como falta de conformidade com a lei moral de Deus, em ato, disposição ou estado.
C. O Conceito Pelagiano de Pecado
O conceito pelagiano do pecado é completamente diverso do que foi apresentado acima. O único ponto de semelhança está em que o pelagiano também vê o pecado em relação à lei de Deus, e o considera uma transgressão da lei. Mas em todas as outras particularidades, sua concepção difere amplamente do conceito bíblico e agostiniano.
1. EXPOSIÇÃO DO CONCEITO PELAGIANO. Pelágio tomou o seu ponto de partida na capacidade do homem. Sua proposição fundamental é: Deus ordenou ao homem que praticasse o bem; daí, este deve ter capacidade para fazê-lo. Significa que o homem tem livre arbítrio no sentido absoluto da expressão, de modo que lhe é possível decidir a favor ou contra o que é bom, e também praticar tanto o bem como o mal. A decisão não depende de qualquer caráter moral que haja no homem, pois a vontade é inteiramente indeterminada. Se o homem vai fazer o bem ou o mal depende simplesmente da sua vontade livre e independente. Disto se segue, naturalmente, que não existe o que chamam de desenvolvimento moral do indivíduo. O bem e o mal estão localizados nas ações isoladas do homem. Desta posição fundamental decorre naturalmente o ensino de Pelágio a respeito do pecado. O pecado consiste somente nos atos isolados provenientes da vontade. A coisa chamada natureza pecaminosa não existe, como tampouco as chamadas disposições pecaminosas. O pecado é sempre uma escolha deliberada do mal, escolha feita por uma vontade perfeitamente livre e que igualmente pode escolher e seguir o bem. Mas se fosse assim, inevitavelmente se seguiria que Adão não foi criado num estado de santidade positiva, mas, sim, num estado de equilíbrio moral, Sua condição seria de neutralidade moral. Nesse caso, ele não era nem bom nem mau, e, portanto, não tinha natureza moral; mas ele escolheu o curso do mal, e assim se tornou pecaminoso. Considerando que o pecado consiste unicamente em atos isolados decorrentes da vontade, a ideia da sua propagação pela procriação é absurda. Uma natureza pecaminosa, se existisse tal coisa, poderia passar de pai a filho, mas os atos pecaminosos não podem ser propagados dessa maneira. Isso é por natureza uma impossibilidade. Adão foi o primeiro pecador, mas em nenhum sentido o seu pecado passou aos seus descendentes. O que chamam de pecado original, não existe. As crianças nascem num estado de neutralidade, começando exatamente como Adão começou, com a exceção de que levam a desvantagem de terem maus exemplos ao seu redor. O seu curso futuro terá que ser determinado pela própria livre escolha. A universidade do pecado é admitida, porquanto toda experiência a testifica. Deve-se à limitação e ao hábito de pecar, que se forma gradativamente. Estritamente falando, segundo o ponto de vista pelagiano, não há pecadores, mas tão somente atos pecaminosos isolados. Isso impossibilita completamente uma concepção religiosa da história da raça.
2. OBJEÇÕES AO CONCEITO PELAGIANO. Há várias objeções fortes ao conceito pelagiano do pecado, das quais as mais importantes são as seguintes
a. A posição fundamental de que Deus só responsabiliza o homem por aquilo que este é capaz de fazer, é absolutamente contrária ao testemunho da consciência e à palavra de Deus. É um fato inegável que, conforme o homem cresce no pecado, decresce a sua capacidade para o bem. Ele se torna, em proporção cada vez maior, um escravo do pecado. Segundo a teria em foco, isso também envolveria uma diminuição da sua responsabilidade. Mas isso equivale a dizer que o próprio pecado redime gradativamente as suas vítimas, aliviando-as da sua responsabilidade. Quanto mais pecador, menos responsável o homem é. Contra essa posição a consciência registra um vigoroso protesto. Paulo não diz que os pecadores endurecidos que ele descreve em Rm 1. 18-32 estavam virtualmente sem responsabilidade, mas, antes, considera-os dignos de morte. Disse Jesus que os ímpios judeus que se vangloriavam da sua liberdade, mas manifestaram a sua extrema iniquidade procurando mata-lo, eram escravos do pecado, não compreendiam a Sua linguagem porque eram incapazes de ouvir a Sua palavra, e iam morrer em seus pecados, Jo 8.21, 22, 34, 43. Embora escravos do pecado, eram, não obstante, responsáveis.
b. Negar que o homem tem por sua natureza uma estrutura moral é simplesmente rebaixa-lo ao nível dos animais. Segundo esse conceito, tudo da vida do homem que não seja uma consciente escolha da vontade, está privado de toda e qualquer qualidade moral. Mas a consciência dos homens em geral atesta o fato de que o contraste entre o bem e o mal aplica-se também às tendências, aos desejos, ao temperamento e às emoções do homem, sendo que esses elementos também possuem um caráter moral. No pelagianismo, o pecado e a virtude são reduzidos a apêndices superficiais do homem, de maneira nenhuma vinculados à sua vida interior. As passagens que damos a seguir mostram que a opinião da Escritura é completamente diversa r 17.9; Sl 51.6, 10; Mt 15.19; Tg 4.1,2.
c. Uma escolha da vontade que não seja de modo nenhum determinada pelo caráter do homem, não somente é inimaginável, como também é eticamente destituída de valor. Se uma boa ação do homem simplesmente acontece porque sim, e não se pode dar nenhuma razão que explique por que não sucedeu o oposto, noutras palavras, se a ação não é uma expressão do caráter do homem, falta-lhe por completo valor moral. É só como um expoente do caráter que uma ação tem o valor moral que se lhe atribui.
d. A teoria pelagiana não pode explicar satisfatoriamente a universalidade do pecado. O mau exemplo dos pais e avós não oferece uma verdadeira explicação. A simples e abstrata possibilidade de um homem vir a pecar, mesmo quando fortalecida pelo mau exemplo, não explica como aconteceu que, de fato, todos os homens pecaram. Como se pode explicar que a vontade sempre e invariavelmente seguiu na direção do pecado, e nunca na direção oposta? É muito mais natural pensar numa disposição geral para pecar.
D. O Conceito Católico romano do Pecado.
Conquanto os Cânones e Decretos do Concilio de Trento sejam um tanto ambíguos sobre a doutrina do pecado, o conceito católico romano do pecado predominante pode ser expresso como segue: O verdadeiro pecado sempre consiste num ato consciente da vontade. É certo que as disposições e os hábitos que não estão de acordo com a vontade de Deus são de caráter pecaminoso; contudo, não se lhes pode chamar pecados, no sentido estrito da palavra. A concupiscência que está presente no homem e por trás do pecado, ganhou domínio sobre o homem no paraíso e, assim, precipitou a perda do donun superadditumda justiça original, não pode ser considerada pecado, mas somente a lenha (fomes) ou o combustível par o pecado. A pecaminosidade dos descendentes de Adão é primordialmente uma condição negativa, apenas, consistindo na ausência de algo que devia estar presente, isto é, da justiça original, que não é essencial à natureza humana. Alguma coisa essencial estaria faltando somente se, como alguns sustentam, a justitia naturalis também fosse perdida. As objeções a esse conceito evidenciam-se perfeitamente no que foi dito com relação à teoria pelagiana. Um simples lembrete delas parece mais que suficiente. Até onde sustenta que o verdadeiro pecado consiste somente numa escolha deliberada da vontade e em atos manifestos, as objeções levantadas contra o pelagianismo lhe são pertinentes. A idéia de que a justiça original foi acrescentada sobrenaturalmente à constituição natural do homem, e de que a sua perda não macula a natureza humana, é antibíblica, como foi demonstrada em nossa discussão da imagem de Deus no homem. De acordo com a Bíblia, a concupiscência é pecado, verdadeiro pecado, e raiz de muitas ações pecaminosas. Expusemos isso quando consideramos o conceito bíblico do pecado.
III. A Transmissão do Pecado
Tanto a Escritura como a experiência nos ensinam que o pecado é universal e, de acordo com a Bíblia, a explicação dessa universalidade está na queda de Adão. Estes dois pontos, a universalidade do pecado e a relação de Adão com a humanidade em geral, pedem consideração agora. Enquanto tem havido acordo geral quanto à universalidade do pecado, tem havido diferentes explicações da ligação entre o pecado de Adão e o dos seus descendentes.
A. Resenha Histórica.
1. ANTES DA REFORMA. Os escritos dos apologetas nada contêm de definido a respeito do pecado original, ao passo que os de Irineu e Tertuliano ensinam claramente que a nossa condição pecaminosa é resultado da queda de Adão. Mas a doutrina da direta imputação do pecado de Adão aos seus descendentes, até a eles é estranha. Tertuliano tinha uma concepção realista da humanidade.Segundo ele, toda a raça humana estava potencial e numericamente em Adão e, portanto, pecou quando ele pecou, e se tornou corrupta quando ele se tornou corrupto. A natureza humana completa pecou em Adão e, daí, toda individualização dessa natureza também é pecaminosa. Orígenes, que foi profundamente influenciado pela filosofia grega, tinha um conceito diferente sobre o assunto, e praticamente não reconhecia ligação alguma entre o pecado de Adão e o dos seus descendentes. Ele via e explicação da pecaminosidade da raça humana primariamente no pecado pessoal de cada alma num estado pré-temporal, embora mencione também certo mistério de geração. Agostinho partilhava a concepção realista de Tertuliano. Apesar de falar de “imputação”, ainda não tinha em mente a imputação direta ou imediata da culpa de Adão à sua posteridade. Sua doutrina do pecado original não é inteiramente clara. Talvez isto se deva ao fato de que ele hesitava na escolha entre o traducionismo e o criacionismo. Embora acentuasse o fato de que todos os homens estavam seminalmente presentes em Adão e pecaram de fato nele, também se aproximava muito da ideia de que eles pecaram em Adão como seu representante. Contudo, sua ênfase principal recaía na transmissão da corrupção do pecado. O pecado é transmitido por propagação, e esta propagação do pecado de Adão é, ao mesmo tempo, um castigo por seu pecado. Wiggers expe resumidamente a ideia com estas palavras: “A corrupção da natureza humana, na raça toda, foi o justo castigo da transgressão do primeiro homem, em quem todos os homens já existiam”. O grande oponente de Agostinho, Pelágio, negava essa conexão entre o pecado de Adão e o da sua posteridade. Como ele a via, a propagação do pecado pela geração natural envolvia a teoria traducionista sobre a origem da alma que ele considerava um erro herético; e a imputação do pecado de Adão a quem quer que fosse, a não ser a ele próprio, estaria em conflito com a retidão divina O Conceito pelagiano foi rejeitado pela igreja, e o pensamento dos escolásticos em geral seguia as linhas indicadas por Agostinho, sempre recaindo a ênfase na transmissão da corrupção de Adão, e não na transmissão da sua culpa. Hugo de São Vítor e Pedro Lombardo sustentavam que a concupiscência real macula o sêmen no ato de procriação, e que essa mancha de algum modo contamina a alma em sua união com o corpo. Anselmo, Alexandre de Hales e Bonaventura salientavam a concepção realista da ligação entre Adão e sua posteridade. Toda a raça humana estava seminalmente presente em Adão, e, portanto, também pecou nele. Sua desobediência dói desobediência da raça humana inteira. Ao mesmo tempo, a geração era considerada a condição sine qua nonda transmissão da natureza pecaminosa. Em Bonaventura e outros depois dele, a distinção entre a culpa original e a corrupção original foi expressa mais claramente. A ideia fundamental era que a culpa do pecado de Adão é imputada a todos os seus descendentes. Adão sofreu a perda da justiça original e com isso incorreu no desprazer divino. Como o resultado, todos os seus descendentes estão privados da justiça original e, nessas condições, são objetos da ira divina. Além disso, de algum modo a corrupção do pecado de Adão passou à sua posteridade, mas a maneira como se deu essa transmissão era matéria de discussão entre os escolásticos. Visto que não eram traducionistas e, portanto, não podiam dizer que a alma, que, afinal de contas, é a verdadeira sede do mal no homem, passa de pai a filho pelo processo de geração natural, perceberam que tinha que ser dita alguma coisa mais para explicar a transmissão do mal inerente. Alguns diziam que este é transmitido por meio do corpo, o qual, por sua vez, contamina a alma assim que entra em contato com ela. Outros, sentindo o perigo dessa explicação, procuravam-na no simples fato de que todo homem nasce agora no estado em que Adão estava antes de ser dotado da justiça original, e, assim, está sujeito à luta entre a carne, livre e desenfreada, e o espírito. Em Tomaz de Aquino, a ênfase realista reaparece, e vigorosamente, embora numa forma modificada. Ele assinalou que a raça humana constitui um organismo e que, como o ato de um membro do corpo – digamos , a mão – é considerado como ato da pessoa, assim o pecado de um membro do organismo da humanidade é imputado ao organismo todo.
2. APÓS A REFORMA. Embora os reformadores não concordassem com os escolásticos quanto à natureza do pecado original, a opinião que tinham da sua transmissão não continha quaisquer elementos novos. As ideias de Adão como representante da raça humana, e da imputação “imediata” da sua culpa aos seus descendentes, não foram expressas com clareza em suas obras. De acordo com Lutero, somos tidos como culpados por Deus por Deus por causa do pecado herdado de Adão e que reside em nós. Calvino fala num tom um tanto semelhante. Ele sustenta que, desde que Adão foi, não somente o progenitor da raça humana, mas também a sua raiz, todos os seus descendentes nascem com natureza corrupta; e que tanto a culpa do pecado de Adão como a própria corrupção inata são-lhes imputadas como pecado. O desenvolvimento da teologia federal trouxe à primeira plana a ideia de Adão como o representante da raça humana, e possibilitou uma distinção mais clara entre a transmissão da culpa e a da corrupção nata constitui também culpa aos olhos de Deus, a teologia federal deu ênfase ao fato de que há uma imputação “imediata” da culpa de Adão aos que ele representou como o chefe da aliança. Os socinianos e os arminianos rejeitaram a ideia da imputação do pecado de Adão aos seus descendentes. Placeus, da escola de Saumur, defendeu a ideia da imputação “mediata”. Negando toda imputação imediata, ele sustentava que, porque herdamos de Adão uma natureza pecaminosa, merecemos ser tratados como se tivéssemos cometido a ofensa original. Este ensino foi uma novidade na teologia reformada (calvinista), e Rivet não teve dificuldade para provar isso, coletando longa lista de testemunhos. Seguiu-se um debate no qual a imputação “imediata” e a “mediata” foram apresentadas como doutrinas mutuamente exclusivas; e no qual se fez parecer que a questão real era se o homem é culpado à vista de Deus unicamente por causado pecado de Adão, imputando àqueles, ou unicamente por causa do seu próprio pecado inerente. A primeira destas não é a doutrina das igrejas reformadas (calvinistas), e a segunda não foi ensinada nelas antes da época de Placeus. Os ensinamentos deste se introduziram na teologia da Nova Inglaterra, e se tornaram a principal característica da Nova Escola (New Haven). Na teologia modernista, a doutrina da transmissão do pecado de Adão a sua posteridade é inteiramente desacreditada. Ela prefere buscar a explicação do mal existente no mundo numa herança animal, que não é pecaminosa. Por estranho que pareça. Até Barth e Brunner, apesar de se oporem violentamente ao modernismo teológico, não consideram a pecaminosidade universal da raça humana como resultado do pecado de Adão. Historicamente, este ocupa um lugar único, meramente como o primeiro pecador.
B. A Universalidade do Pecado
Poucos se inclinarão a negar a presença do mal no coração humano, mas há muitas divergências quanto à natureza desse mal e quanto ao modo como se originou. Mesmo os pelagianos e os socinianos estão prontos a admitir que o pecado é universal. Este é um fato que se impõe à atenção de toda gente.
1. HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E DA FILOSOFIA O ATESTA. A história das religiões dá testemunho da universalidade do pecado. A pergunta de Jó, “Como seria justo o homem perante Deus?” (Ver Jó 25.4) não foi feita somente nos domínios da revelarão especial, mas também fora deles, no mundo gentílico. As religiões pagãs atestam uma consciência universal do pecado, e a necessidade de reconciliação com o Ser Supremo. Há um sentimento generalizado de que os deuses estão ofendidos e devem ser aplacados de algum modo. Há uma voz universal da consciência dando testemunho do fato de que o homem carece do ideal e está condenado à vista de algum Poder mais alto. Altares cheirando ao sangue dos sacrifícios, muitas vezes dos sacrifícios de filhos queridos, repetidas confissões de más ações, e orações para livramento do mal – tudo aponta para a consciência de pecado. Os missionários veem isso por onde vão. A história da filosofia indica o mesmo fato. Os mais antigos filósofos gregos já tiveram que lutar com o problema do mal moral, e desde a época deles, nenhum filósofo de renome pôde ignora-lo. Todos foram constrangidos a admitir a sua universalidade, e isso a despeito do fato de que não foram capazes de explicar o fenômeno. Houve, é verdade, um otimismo superficial no século dezoito, que sonhava com a inerente bondade do homem, mas, em sua insensatez, fugia dos fatos e recebeu cortante censura de Kant. Muitos teólogos modernistas forma induzidos a crer e a pregar essa bondade humana inerente como na verdade evangélica, mas hoje em dia muitos deles o qualificam como um dos mais perniciosos erros do passado. Uma coisa é certa: os fatos da vida não autorizam esse otimismo.
2. A BÍBLIA O ENSINA CLARAMENTE. Há inequívocas declarações a Escritura que indicam a pecaminosidade universal do homem, como nas seguintes passagens: 1 Rs 8.46; Sl 143.2; Pv 20.9; Ec 7.20; Rm 3.1-12, 19, 20, 23; Gl 3.22; Tg 3.2; 1 Jo 1.8, 10. Várias passagens da Escritura ensinam que o pecado é herança do homem de sde a hora do seu nascimento e, portanto, está presente na natureza humana tão cedo que não há possibilidade de ser considerado como resultado de imitação, Sl 51.5; Jó 14.4; Jo 3.6. Em Ef 2.3 diz o apóstolo Paulo que os efésios eram “por natureza” filhos da ira, como também os demais”. Nesta passagem a expressão “por natureza “indica uma coisa inata e original, em distinção daquilo que adquirido. Então, o pecado é uma coisa original, da qual participam todos os homens e que os faz culpados diante de Deus. Além disso, de acordo com a Escritura, a morte sobrevém mesmo aos que nunca exerceram uma escolha pessoal e consciente, Rm 5.12-14. Esta passagem implica que o pecado existe no caso de crianças, antes de possuírem discernimento moral. Desde que sucede que as crianças morrem e, portanto, o efeito do pecado está presente na situação delas, é simplesmente natural supor que a causa também está presente. Finalmente, a Escritura ensina também que todos os homens se acham sob condenação e, portanto, necessitam da redenção que há em Cristo Jesus. Nunca se declara que as crianças constituem exceção a essa regra; Cf. As passagens recém -citadas e também Jo 3.3, 5; 1 Jo 5. 12. Não contradizem isto as passagens que atribuem certa justiça ao homem, como Mt 9.12, 13; At 10.35; Rm 2.14; Fp 3.6; 1 Co1.30, pois esta pode ser a justiça civil, cerimonial ou pactual, a justiça da lei ou a justiça que há em Cristo Jesus.
C. A Relação do pecado de Adão com o da Raça.
1. NEGAÇÃO DESSA RELAÇÃO. Alguns negam a relação causal do pecado de Adão com a pecaminosidade da raça, total ou parcialmente.
a. Os pelagianos e os socinianos negam absolutamente que haja alguma ligação necessária entre o nosso pecado e o de Adão. O primeiro pecado foi de Adão somente, e nada tem a ver com a sua posteridade, de forma alguma. O máximo que eles admitiram é que o mal exemplo de Adão induziu à imitação.
b. Os semipelagianos e os mais antigos arminianos ensinam que o homem herdou a incapacidade natural de Adão, mas não é responsável por essa incapacidade, de modo que não se liga a isso nenhuma culpa, e até se pode dizer que, nalguma medida, Deus está na obrigação de prover cura para isso. Os arminianos wesleyanos admitem que essa corrupção inata também envolve culpa.
c. A teoria da Nova Escola (New Haven) ensina que o homem nasce com uma tendência inerente para pecar, em virtude da qual a sua preferência moral é invariavelmente errada; masque essa tendência não pode propriamente ser chamada pecado, dado que, sempre e exclusivamente, o pecado consiste em consciente e intencional transgressão da lei.
d. A teologia da crise acentua a solidariedade do pecado na raça humana, mas nega que o pecado se tenha originado num ato de Adão no paraíso. A Queda pertence à pré ou super-história, e já era uma coisa do passado quando o Adão histórico entrou em cena. É o segredo da predestinação de Deus. A narrativa da Queda é um mito. Adão aparece como o tipo de Cristo, tendo-se em conta quanto se possa ver nele que a vida sem pecado é possível em comunhão com Deus. Diz Brunner: “Em Adão todos pecaram – é a afirmação bíblica; mas como? A Bíblia não nos diz isso. A doutrina do pecado original implantada nela”.
2. DIFERENTES TEORIAS QUE PROCURAM EXPLICAR A RELAÇÃO.
a. Teoria Realista. O mais antigo método usado para explicar a relação existente entre o pecado de Adão e a culpa e corrupção de todos os seus descendentes foi a teoria realista. Essa teoria pretende que a natureza constitui uma única unidade, não apenas genérica, mas também numericamente. Adão possuía a natureza humana completa, e nele ela se corrompeu, por ato de apostasia dela em Adão. Individualmente, os homens não são substâncias isoladas, mas, sim, manifestações da mesma substância geral; são numericamente um só. Essa natureza humana universal tornou-se corrupta e culpada em Adão, e, consequentemente, cada individualização dela nos descendentes de Adão também é corrupta e culpada desde o início da sua existência. Quer dizer que todos os homens pecaram de fato em Adão, antes de ter começo a individualização da natureza humana. Essa teoria foi aceita por alguns dos “pais da igreja” primitivos e por alguns dos escolásticos, e foi defendida mais recentemente pelo dr. Shedd. Contudo, está sujeita a diversas objeções:
(1) Descrevendo as almas dos homens como individualizações da substância espiritual geral que estava presente em Adão, parece implicar que a substância da alma é de natureza material, e assim nos larga inevitavelmente nalgum tipo de materialismo.
(2) É contrária ao testemunho da consciência e não protege suficientemente os interesses da personalidade humana. Todo homem tem consciência de que é uma personalidade à parte, e, portanto, é muito mais que uma simples onda que passa no oceano geral da existência.
(3) Ela não explica por que os descendentes de Adão são responsabilizados somente pelo primeiro pecado dele, e não por seus pecados posteriores, nem pelos pecados de todas as gerações de antepassados subsequentes a Adão.
(4) tampouco essa teoria responde a importante indagação, por que Cristo não foi responsabilizado pela prática fatual do pecado em Adão, pois certamente Ele compartilhou a mesma natureza que pecou de fato em Adão.
b. A doutrina da aliança das obras. Esta implica que Adão tinha dupla relação com os seus descendentes, a saber, a de chefe natural da humanidade, e a de chefe representativo de toda a raça humana na aliança das obras.
(1) A relação natural. Em sua relação natural, Adão foi o pai de toda a humanidade. Quando foi criado por Deus, estava sujeito a mudança, e não tinha direito legítimo a um estado imutável. Estava obrigado a obedecer a Deus, e esta obediência não lhe dava direito a nenhuma recompensa. Por outro lado, se pecasse, ficaria sujeito à corrupção e ao castigo, mas o pecado seria só dele, e não poderia ser lançado na conta dos seus descendentes. Dabney sustenta que, de acordo com a lei de que os iguais se reproduzem (o igual gera o seu igual), a corrupção de Adão passaria aos seus descendentes. Mas, seja como for – e é útil especular sobre isso – eles não poderiam ser responsabilizados por essa corrupção. Não poderiam ser considerados culpados em Adão meramente em virtude da relação natural que havia entre ele e a raça. A apresentação reformada (calvinista) habitual é diferente.
(2) A relação pactual. À relação natural de Adão com os seus descendentes, Deus, por Sua graça, acrescentou uma relação pactual composta de vários elementos positivos:
(a) Um elemento de representação. Deus ordenou que nessa aliança Adão não estaria só por si próprio, mas como o representante de todos os seus descendentes. Consequentemente, ele foi o chefe da raça, não somente num sentido paterno, mas também num sentido federal.
(b)Um elemento de prova. Enquanto que, sem essa aliança, Adão e os seus descendentes estariam num continuado estado de prova, em constante risco de pecar, a aliança garantiu que a perseverança persiste por um período fixo de tempo, seria recompensada com o estabelecimento do homem num permanente estado de santidade e bem-aventurança. (
c) um elemento de recompensa ou punição. Segundo os termos da aliança, obteria legítimos direitos à vida eterna, se cumprisse as condições da aliança. E não somente ele, mas também todos os seus descendentes participarem dessa bênção. Portanto, em sua operação normal, as disposições pactuais seriam de incalculável benefício para a humanidade. Mas havia a possibilidade de que o homem desobedecesse, e, nesse caso, os resultados seriam correspondentemente desastrosos. A transgressão do mandamento incluso na aliança redundaria em morte. Adão escolheu o curso da desobediência, corrompeu-se pelo pecado, tornou-se culpado aos olhos de Deus e, como tal, sujeito à sentença de morte. E porque ele era o representante federal da raça, sua desobediência afetou os seus descendentes todos. Em Seu reto juízo, Deus imputa a culpa do primeiro pecado, cometido pelo chefe da aliança, a todos quantos se relacionam federalmente com ele. E, como resultado, nascem também numa condição depravada e pecaminosa, e essa corrupção inerente envolve culpa também. Esta doutrina explica por que somente o primeiro pecado de Adão, e não os seus pecados subsequentes nem os dos outros antepassados nossos, é-nos imputado, e também salvaguarda a impecabilidade de Jesus, pois Ele não era uma pessoa humana e, portanto, não fazia parte da aliança das obras.
c. Teoria da imputação mediata. Essa teoria nega que a culpa do pecado de Adão seja diretamente imputada aos seus descendentes, e apresenta a matéria como segue: Os descendentes de Adão herdam dele a sua corrupção inata por um processo de geração natural, e somente com base na depravação inerente que eles compartem com ele, são considerados culpados da apostasia dele. Não nascem corruptos porque são culpados em Adão, mas são considerados culpados porque são corruptos. Sua condição não se baseia em sua posição legal, mas a sua posição legal se baseia em sua condição. Essa teoria, defendida primeiramente por Placeus, foi adotada por Vitringa e Venema, ambos juniores, por vários teólogos da Nova Inglaterra e pro alguns teólogos da Escola Nova, da Igreja Presbiteriana. Essa teoria é objetável por diversas razões:
(1) Uma coisa não pode ser mediada por suas próprias conseqüências. A depravação inerente com a qual nascem os descendentes de Adão já é resultado do pecado de Adão e, portanto, não pode ser considerada como a base sobre a qual sã o culpados do pecado de Adão.
(2) Ela não oferece base objetiva nenhuma para a transmissão da culpa e depravação de Adão e todos os seus descendentes. Mas é preciso que haja uma base legal objetiva para isso.
(3) Se essa teoria fosse coerente, teria que ensinar a imputação mediata dos pecados de todas as gerações precedentes às subsequentes, pois a sua corrupção conjunta é transmitida por geração.
(4) Ela parte, ainda, do pressuposto de que é possível haver corrupção moral que não é culpa ao mesmo tempo, corrupção que não torna a pessoa passível de punição.
(5) E, finalmente, se a corrupção inerente, que está presente nos descendentes de Adão, pode ser considerada como a base legal para a explicação de alguma outra coisa, já não há necessidade de nenhuma imputação mediata.
IV. O Pecado na Vida da Raça Humana
A. O Pecado Original.
O estado e condição de pecado em que os homens nascem é designado na teologia pelo nome de peccatun originale, literalmente traduzido por “pecado original”. Esta expressão melhor que o nome holandês “erfzonde”, visto que este último, estritamente falando, não cobre tudo quanto pertence ao pecado original. Não é um apropriado designativo da culpa origina l, pois esta não é herdada, mas, sim, é-nos imputada. Chama-se “pecado original”
(1) porque derivado da raiz original da raça humana;
(2) porque está presente na vida de todo e qualquer indivíduo, desde a hora do seu nascimento e, portanto, não pode ser considerado como resultado de imitação;
(3) porque é a raiz interna de todos os pecados concretizados que corrompem a vida do homem. Devemos estar vigilantes contra o erro de pensar que a expressão implica, de alguma forma, que o pecado por ela designado pertence à constituição original da natureza humana, o que implicaria que Deus criou o homem já na condição de pecador.
1. RESENHA
HISTÓRICA. Os escritos dos primeiros “pais da igreja” não contam nada que seja muito definido a respeito do pecado original. Segundo os “pais” gregos, há uma corrupção física da raça humana, corrupção derivada de Adão, mas esta não constitui pecado e não envolve culpa. A liberdade da vontade não foi afetada diretamente pela Queda, mas só indiretamente, pela corrupção física herdada. A tendência patente na igreja grega culminou finalmente no pelagianismo, que negava absolutamente o pecado original. Na igreja latina apareceu uma tendência diversa, especialmente em Tertuliano, de acordo com o qual a propagação da alma envolve a propagação do pecado. Ele considerava o pecado original como uma mancha ou corrupção hereditária e pecaminosa, que não excluía a presença de algum bem no homem. Ambrósio foi além de Tertuliano, considerando o pecado original como um estado e distinguindo entre a corrupção inata e a resultante culpa do homem. O livre arbítrio do homem foi enfraquecido pela Queda. Foi especialmente em Agostinho que a doutrina do pecado original alcançou desenvolvimento mais completo. Segundo ele, a natureza do homem, tanto física como moral, é totalmente corrompida pelo pecado de Adão, de modo que ele não pode deixar de pecar. Essa corrupção ou esse pecado original herdado é um castigo moral pelo pecado de Adão. A qualidade da natureza do homem é tal que, em seu estado natural, ele só pode e só quer praticar o mal. Em virtude desse pecado, o homem já está debaixo de condenação. Não é apenas corrupção, mas também culpa. O semipelagiano reagiu contra o absolutismo do conceito agostiniano. Admita que a raça humana toda está envolvida na queda de Adão, que a natureza humana está contaminada pelo pecado hereditário, e que todos os homens são, por natureza, propensos ao mal e incapazes, sem a graça de Deus, de consumar qualquer boa obra; mas negava a depravação total do homem, a culpa do pecado original e a perda da liberdade da vontade. Este veio a ser o conceito predominante durante a Idade Média, embora houvesse alguns escolásticos proeminentes que, de modo geral, eram agostinianos em sua conceituação do pecado original. O conceito que Anselmo tinha do pecado original estava em completa harmonia com o de Agostinho. Segundo esse conceito, o pecado original consiste da culpa da natureza (a natureza da raça humana inteira), contraída por um único ato de Adão, e da resultante e inerente corrupção da natureza humana, transmitida à posteridade e se manifestando numa tendência para pecar. Esse pecado envolve também a perda do poder de autodeterminação rumo à santidade (liberdade material da vontade), e faz do homem um escravo do pecado. A opinião predominante entre os escolásticos era que o pecado original não é uma coisa positiva, mas, antes, a ausência de algo que devia estar presente, em particular a privação da justiça original, conquanto alguns acrescentassem um elemento positivo, a saber, uma inclinação para o mal. Tomaz de Aquino sustentava que o pecado original, considerando em seu elemento material, é concupiscência, mas considerado em seu elemento formal, é a privação da justiça original. Há uma dissolução d harmonia na qual a justiça original consistia, e, neste sentido, o pecado original pode ser descrito como um amolecimento da natureza. Falando em termos gerais, os reformadores estavam de acordo com Agostinho, embora Calvino diferisse dele, especialmente em dois pontos, acentuando o fato de que o pecado não é uma coisa puramente negativa, e que não se limita à natureza sensorial e emocional do homem. Na época da Reforma, os socinianos seguiam os pelagianos,em sua negação do pecado original, e no século dezessete os arminianos romperam com a fé reformada e aceitaram o conceito semipelagiano do pecado original. Desde aquele tempo, várias nuanças de opinião forma defendidas nas igrejas protestantes, tanto da Europa como da América.
2. OS DOIS ELEMENTOS DO PECADO ORIGINAL. Devemos distinguir dois elementos no pecado original, a saber: a. A culpa original.
A palavra “culpa” expressa a relação que há entre o pecado e a justiça, ou, como o colocam os teólogos mais antigos, e a penalidade da lei. Quem é culpado está numa relação penal com a lei. Podemos falar da culpa em dois sentidos, a saber, como reatus culpae (réu convicto) e como reatus poenae (réu passível de condenação). A primeira, que Turretino chama de “culpa potencial”, o demérito moral de um ato ou estado. Essa culpa da essência do pecado e é uma parte inseparável da sua pecaminosidade. Prende-se somente aos que praticam pessoalmente ações pecaminosas, e prende-se a eles permanentemente. Não pode ser removida pelo perdão, não é removida pela justificação baseada nos méritos de Jesus Cristo, e muito menos pelo perdão puro e simples. Os pecados do homem são inerentemente merecedores de males, mesmo depois que ele foi justificado. Neste sentido, a culpa não pode ser transferida de uma pessoa para outra. O sentido habitual, porém, em que falamos de culpa na teologia, é o de reatus poenae . Com isto se quer dizer merecimento de punição, ou obrigação de prestar satisfação à justiça de Deus pela violação da lei, feita por determinação pessoal. Neste sentido, a culpa não faz parte da essência do pecado, mas é, antes, uma relação com a sanção penal da lei. Se não houvesse nenhuma sanção ligada à inobservância das relações morais, todo abandono da lei seria pecado, mas não envolveria sujeição. Neste sentido, a culpa pode ser removida pela satisfação da justiça, pessoal ou vicariamente. Pode ser transferida de uma pessoa para outra, ou pode ser assumida por uma pessoa em lugar de outra. É retirada dos crentes pela justificação, de modo que os seus pecados, embora merecedores de condenação, não os tornam sujeitos ao castigo. Os semipelagianos e os mais antigos arminianos, ou “remonstrantes”, negavam que o pecado original envolve culpa. A culpa do pecado de Adão, cometido por ele na qualidade de chefe federal da raça humana, é imputada a todos os seus descendentes. Isso é evidenciado pelo fato de que, com a Bíblia ensina, a morte, como castigo do pecado, passou de Adão a todos os seus descendentes: Rm 5.12-19; Ef 2.3; 1 Co 15.22.
b. Corrupção original.
A corrupção original inclui duas coisas, a saber, a ausência da justiça original e a presença do mal positivo. Deve-se notar:
(1) Que a corrupção original não é apenas uma moléstia, como a descrevem alguns dos “pais” gregos e os arminianos, mas, sim, pecado, no sentido real da palavra. A culpa está ligada ao pecado; quem nega isto não tem uma concepção bíblica da corrupção original.
(2) Que não se deve considerar essa corrupção como uma substancia infundida na alma humana, nem como uma mudança da substancia no sentido metafísico da palavra. Este foi o erro dos maniqueus, e de Flacius Illyricus nos dias da Reforma. Se a substancia da alma fosse pecaminosa, seria substituída por uma nova substancia na regeneração; mas não é o que acontece.
(3) Que não é mera privação. Em sua polemica com os maniqueus, Agostinho não somente negava que o pecado era uma substancia, mas também afirmava que era apenas uma privação. Chamava-lhe privatio boni (privação do bem). Mas o pecado original não é somente negativo; é também uma disposição positiva para o pecado. A corrupção original pode ser examinada em mais de uma perspectiva, a saber, como depravação total e como incapacidade total.
c. Depravação total. Em vista do seu caráter impregnante, a corrupção herdada toma o nome de depravação total. Muitas vezes esta frase é mal compreendida, e, portanto, requer cuidados a discriminação. Negativamente, não implica:
(1) que todo homem é tão completamente depravado como poderia chegar a ser;
(2) que o pecado não tem nenhum conhecimento inato de Deus, nem tampouco tem uma consciência que discerne entre o bem e o mal;
(3) que o homem pecador raramente admira o caráter e os atos virtuosos dos outros, ou que é incapaz de afetos e atos desinteressados em suas relações com os seus semelhantes; nem (4) que todos os homens não regenerados, em virtude da sua pecaminosidade inerente, se entregarão a todas as formas de pecado: muitas vezes acontece que uma forma de pecado exclui outra. Positivamente, a expressão “depravação total” indica:
(1) que a corrupção inerente abrange todas as partes da natureza do homem, todas as faculdades e poderes da alma e do corpo; e
(2) que absolutamente não há no pecador bem espiritual algum, isto é, bem com relação a Deus, mas somente perversão. Esta depravação total é negada pelos pelagianos, pelo socinianos e pelos arminiano do século dezessete, mas é ensinada claramente na Escritura, Jô 5.42; Rm 7.18, 23; 8.7; Ef 4.18;2 Tm 3.2-4; Tg 1.15; Hb 3.12.
d. Incapacidade total. Com respeito ao seu efeito sobre os pecadores espirituais do homem, a corrupção original herdada toma o nome de incapacidade total. Aqui, de novo, é necessário fazer adequada distinção. Na atribuição de incapacidade total à natureza do homem, não queremos dizer que lhe é impossível fazer o bem em todo e qualquer sentido da palavra. Os teólogos reformados (calvinistas) geralmente dizem que ele ainda é capaz de realizar:
(1) o bem natural;
2) o bem civil ou a justiça civil; e
(3) exatamente, o bem religioso. Admite-se que o mesmo espaço não regenerado possui alguma virtude, a qual se revela nas relações da vida social, em muitos atos e sentimentos que merecem a sincera aprovação e gratidão dos seus semelhantes, e que até encontram a aprovação de Deus, até certo ponto. Ao mesmo tempo, afirma-se que esses mesmo atos e sentimentos, quando considerados em relação a Deus, são radicalmente defeituosos. Seu defeito fatal é que não são motivados pelo amor a Deus, nem pela consideração de que a vontade de Deus os exige. Quando falamos da corrupção do homem em termos de incapacidade total, queremos dizer duas coisas:
(1) que o pecador não regenerado não pode praticar nenhum ato, por insignificante que seja, que fundamentalmente obtenha a aprovação de Deus e corresponda às exigências da santa lei de Deus; e
(2) que ele não pode mudar a sua preferência fundamental pelo pecado e por isso mesmo, trocando-a pelo amor a Deus; não pode sequer fazer algo que se aproxime de tal mudança. Numa palavra, ele é incapaz de fazer qualquer bem espiritual. Há abundante suporte bíblico para esta doutrina: Jô 1.13; 3.5; 6.44; 8.34; 15.4, 5; Rm 7.18, 24; 8.7, 8;1 Co 2.14; 2 Co 3.5; Ef 2.1, 8-10; Hb 11.6. Todavia, os pelagianos acreditam na plena capacidade do homem, negando que as suas faculdades morais foram prejudicadas pelo pecado. Os arminianos falam de uma capacidade advinda da graça, porque acreditam que Deus infunde a Sua graça comum a todos os homens, capacitando-os à conversão a Deus e à fé. Os teólogos da Nova Escola atribuem ao homem uma capacidade natural, distinta de uma capacidade moral, distinção copiada da grande obra deEdward, Sobre a Vontade (On the Will). O sentido do seu ensino é que o homem, em seu estado decaído, continua de posse de todas as faculdades naturais que se requerem para a realização de algum bem espiritual (intelecto, vontade etc.), mas lhe falta capacidade moral, isto é, a capacidade de dar apropriada direção àquelas faculdades, direção agradável a Deus. A distinção em foco é apresentada com o fim de salientar o fato de que o homem é voluntariamente pecaminoso, e bem que se pode dar ênfase a isto. Mas os teólogos da Nova Escola afirmam que o homem seria capaz de praticar o bem espiritual se tão somente quisesse faze-lo. Significa que a “capacidade natural” da qual eles falam, afinal de contas, capacidade para praticar verdadeiro bem espiritual. Pode-se dizer em geral que a distinção feita entre a capacidade natural e a capacidade moral não é desejável, pois:
(1) não tem base na Escritura, a qual ensina que o homem não é capaz de fazer p que dele se requer;
(2) essa distinção é essencialmente ambígua e enganosa: a posse das faculdades requeridas para a realização do bem espiritual não constitui ainda uma capacidade para realiza- lo;
(3) “natural” não uma antítese apropriada de “moral”, pois uma coisa pode ser natural e moral ao mesmo tempo; e a incapacidade do homem também é natural num sentido importante, a saber, no sentido de ser própria da sua natureza no presente estado desta como propagada naturalmente; e
(4) a linguagem não expressa com precisão a importante distinção pretendida; o que se quer dizer é que é moral, e não física nem constitucional; tem sua base, não na falta de alguma faculdade, mas no estado moral corrupto das faculdades e da disposição do coração.
3. O PECADO ORIGINAL E A LIBERDADE HUMANA. No contexto da doutrina da incapacidade total do homem, naturalmente surge a questão se, então, o pecado também envolve a perda da liberdade, ou daquilo a que geralmente chama liberum arbitrium – livre arbítrio, vontade livre. Esta questão deve ser respondida com discriminação pois, colocada desta maneira geral, pode ser respondida negativa e positivamente. Em certo sentido, o homem perdeu a sua liberdade; noutro sentido, não a perdeu. Há uma certa liberdade que é possessão inalienável de um agente livre, a saber, a liberdade de escolher o que lhe agrada, em pleno acordo com as disposições e tendências predominantes da sua alma. O homem não perdeu nenhum das faculdades constitucionais necessárias para constituí-lo um agente moral responsável. Ele ainda possui razão, consciência e a liberdade de escolha. Ele tem capacidade para adquirir conhecimento e para sentir e reconhecer distinções e obrigações morais; e os seus afetos, tendências e ações são espontâneos, de sorte que ele escolhe e recusa conforme ache que o objeto de exame lhe sirva ou não. Além disso, ele tem a capacidade de apreciar e de fazer muitas coisas que são boas e amáveis, benévolas e justas, nas relações que ele mantém com os seus semelhantes. Mas o homem perdeu a sua liberdade material, isto é, o poder racional de determinar o procedimento, rumo ao bem supremo, que esteja em harmonia com a constituição moral original da sua natureza. O homem tem, por sua natureza, uma irresistível inclinação para o mal. Ele não é capaz de compreender e de amar a excelência espiritual, de procurar e realizar coisas espirituais, as coisas de Deus, que pertencem à salvação. Esta posição, que é agostiniana e calvinista, é peremptoriamente contraditada pelo pelagianismo e pelo socianismo e, em parte, também pelo semipelagianismo e pelo arminianismo. O liberalismo modernista, que é essencialmente pelagiano, julga a doutrina de que o homem perdeu a capacidade de determinar sua vida em direção à real justiça e santidade, altamente ofensiva, e se vangloria da capacidade do homem, de escolher e fazer o que é reto e bom. Por outro lado, a teologia dialética (o bartianismo) reafirma vigorosamente a completa incapacidade do homem, de fazer sequer o mais leve movimento em direção a Deus. O pecador é escravo do pecado e não tem a menor possibilidade de tomar a direção oposta.
4. A TEOLOGIA DA CRISE E O PECADO ORIGINAL. Talvez seja bom, nesta altura, definir abreviadamente a posição da teologia da Crise, ou do bartianismo, com relação à doutrina do pecado original. Walter Lowrie diz corretamente: “Barth tem muito que dizer sobre a Queda – mas nada sabe do ‘pecado original’. Que o homem um ser decaído, podemos ver com clareza; mas a Queda não é um evento para o qual podemos apontar, na história; pertence decididamente à pré-história, à Urgeschichte, num sentido metafísico”. Brunner tem algo que dizer sobre isso em sua obra sobre O Homem em Revolta (Man in Revolt). Ele não aceita a doutrina do pecado original nos entido tradicional e eclesiástico da expressão. O primeiro pecado de Adão não podia ser lançado na conta de todos os seus descendentes, e não foi; tampouco rendou esse pecado num estado pecaminoso, que passou à sua posteridade e que atualmente é a frutífera raiz de todo pecado real e concreto. “Jamais o pecado um estado, mas sempre um ato. Mesmo ser um pecador não um estado, mas, sim, um ato, porque ser uma pessoa”. Na opinião de Brunner, o conceito tradicional contém um indesejável elemento de determinismo, e não salvaguarda a responsabilidade do homem. Mas a sua rejeição salienta acertadamente a solidariedade da raça humana quanto ao pecado, e a transmissão “da natureza espiritual, do ‘cárter’, dos pais aos filhos”. Contudo, ele busca a explicação da universalidade do pecado noutra coisa que não o “pecado original”. O homem que Deus criou não era simplesmente um homem só, mas uma pessoa responsável, criada em ligação comunitária com outras pessoas e para viver comunitariamente. O indivíduo isolado não passa de uma abstração. “Na criação nós somos uma unidade individualizada e articulada, um corpo com muitos membros.” Se um membro sofre, todos os membros sofrem com ele. Prosseguindo, diz ele: “Se a nossa origem isso, nossa oposição a esta origem não pode ser uma experiência, um ato, do indivíduo como tal... Certamente cada indivíduo é um pecador como um indivíduo; mas, ao mesmo tempo ele é o todo em sua solidariedade unida, o corpo, a humanidade real e completa.” Portanto, houve solidariedade quando o homem pecou; a raça humana caiu e se afastou de Deus; mas pertence à própria natureza do pecado negarmos nós esta solidariedade no pecado. O resultado desse pecado inicial é que agora o homem é pecador; mas o fato de que o homem agora é pecador não deve ser considerado como a causa das suas ações pecaminosas individuais. Não se pode admitir essa relação causal, pois todo pecado que o homem comete é uma nova decisão contra Deus. A declaração de que o homem é pecador não significa que ele se acha num estado ou condição de pecado, mas, sim, que ele está de fato engajado numa rebelião contra Deus. Como Adão, nós também nos afastamos de Deus, e “aquele que comete esta apostasia não pode senão repeti-la continuadamente, não porque se lhe tornou um hábito, mas porque este é o caráter distintivo deste ato”. O homem não pode inverter o curso, mas continua a pecar, sem parar. A Bíblia nunca fala do pecado, senão como o ato de afastar- se de Deus. “Mas no próprio conceito de ‘ser pecador’. Este ato concebido como um ato que determina a existência completa do homem.” Nessa descrição há muita coisa que lembra a descrição realista de Tomaz de Aquino
5. OBJEÇÕES À DOUTRINA DA DEPRAVAÇÃO TOTAL E DA INCAPACIDADE TOTAL.
a. É incoerente com a obrigação moral. A mais óbvia e a mais plausível objeção à doutrina da depravação total e da incapacidade total é a de que ela é incoerente com a obrigação moral. Diz-se que não se pode responsabilizar com justiça o homem por uma coisa para a qual ele não tem a capacidade requerida. Mas a implicação geral este princípio é uma falácia. Ele pode ser mantido nos caos de incapacidade resultante de uma limitação imposta por Deus à natureza do homem; mas certamente não se aplica na esfera da moralidade e da religião, como já foi exposto no item anterior. Não devemos esquecer-nos de que a incapacidade que aqui está sendo examinada é auto-imposta, tem origem moral e não se deve a nenhuma limitação que Deus tenha imposto ao homem. O homem é incapaz como resultado da escolha pervertida que fez em Adão.
b. Ela retira todos os motivos para o esforço. Uma segunda objeção alega que esta doutrina elimina todos os motivos para o esforço humano e destrói todas as bases racionais para a utilização dos meios de graça. Se sabemos que não conseguiremos levar a efeito um determinado fim, por que havemos de utilizar os meios recomendados para a sua realização? Pois bem, é perfeitamente certo que o pecador iluminado pelo Espírito Santo e verdadeiramente cônscio da sua incapacidade natural, renuncia à justiça das obras. E é Isso exatamente o necessário. Mas disso, não é verdade que a doutrina da incapacidade tende naturalmente a fomentar a negligência no uso dos meios de graça ordenados por Deus. Com base neste princípio, o agricultor também poderia dizer: não posso produzir uma colheita; por que devo cultivar as minhas terras? Mas isto seria loucura total. Em todos os departamentos da atividade humana, o resultado depende da cooperação de causas sobre as quais o homem não tem domínio. As bases escriturísticas para o emprego dos meios permanece: Deus manda empregar meios; os meios ordenados por Deus são adaptados ao fim colimado; ordinariamente o fim não é atingido, exceto pelo uso dos meios designados; e Deus prometeu a utilização desses meios.
c. Favorece o atraso da conversão. Afirma-se também que esta doutrina favorece o atraso da conversão. Se o homem crer que não poderá mudar o seu coração, que não poderá arrepender -se e crer no Evangelho, achará que pode aguardar passivamente a ocasião em que Deus agrade mudar a direção da sua vida. Ora, pode haver, e a experiência ensina que há, alguns que de fato adotam essa atitude; mas em regra o efeito da doutrina em foco é completamente diferente. Se os pecadores, para os quais o pecado veio a ser muito querido, estivessem cônscios do seu poder de mudar as suas vidas quando quisessem, seriam tentados a deixar essa mudança para o último momento. Mas, se a pessoa estiver cônscia do fato de que essa realização tão desejável está fora dos limites das suas forças, instintivamente procurará auxílio de fora. O pecador que pensa deste modo, quanto à sua salvação, procurará a ajuda do grande Médico da alma, reconhecendo assim a sua própria incapacidade
B. O Pecado Fatual.
Os católicos romanos e aos arminianos menosprezaram a ideia do pecado original e, depois, desenvolveram doutrinas como a da purificação do pecado original (se bem que não só desse) pelo batismo e pela graça suficiente, pelo que fica muito obscurecida a sua gravidade. A ênfase é data clara e completamente aos pecados atuais. Os pelagianos, os socinianos, os teólogos modernistas – e, por estranho que pareça – também a Teologia da Crise, só reconhecem os pecados atuais. Deve-se dizer, porém, que esta teologia fala do pecado igualmente no singular e no plural, isto é, ela reconhece a solidariedade no pecado, não reconhecida por alguns dos outros. A teologia reformada (calvinista) sempre reconheceu devidamente o pecado original e sua relação com os pecados atuais.
1. RELAÇÃO ENTRE O PECADO ORIGINAL E O PECADO FATUAL. Aquele originou-se num ato livre de Adão como o representante da raça humana, numa transgressão da lei de Deus e numa corrupção da natureza humana, tornando-se sujeito à punição de Deus. Aos olhos de Deus, o pecado de Adão foi o pecado de todos os seus descendentes, de modo que eles nascem como pecadores, isto é, num estado de culpa e numa condição corrupta. O pecado original tanto é um estado como uma qualidade inerente à corrupção do homem. Todo homem é culpado em Adão e, consequentemente, nasce com uma natureza depravada e corrupta. E esta corrupção interna é a fonte poluída de todos os pecados atuais. Quando falamos de pecado fatual, ou peccatumactuale, empregamos a palavra “fatual” ou “actuale” num sentido compreensivo. A expressão “pecados fatuais” não indica apenas ações externas praticadas por meio do corpo, mas também todos os pensamentos e volições conscientes que decorrem do pecado original. São os pecados individuais expressos em atos, diversamente da natureza e inclinação herdada. O pecado original é somente um; o pecado fatual é múltiplo. Os pecados fatuais podem ser interiores, como no caso de uma dúvida consciente e particular, ou de um mal desígnio sediado na mente, ou de uma cobiça consciente e particular do coração; mas também podem ser exteriores, como a fraude, o furto, o adultério, o assassínio etc. Enquanto que a existência do pecado original tem-se defrontado com a sua negação amplamente generalizada, a presença do pecado fatual na vida do homem geralmente é admitida. Contudo, isso não quer dizer que as pessoas sempre tiveram consciência igualmente profunda de pecado. Hoje em dia ouvimos falar muito da “perda do sentimento de pecado”, embora os modernistas se apressem a garantir –nos que, enquanto perdemos o senso ou sentimento de pecado, adquirimos os senso ou sentimento dos pecados; no plural, isto é, de pecados fatuais definidos. Mas não há dúvida de que, numa alarmante extensão, as pessoas perderam o senso da hediondez do pecado, cometido contra um Deus santo, e mormente o consideram mera infração dos direitos do próximo. Deixam de ver que o pecado é um poder fatal em suas vidas, poder que a cada passo incita os seus espíritos rebeldes, torna-os culpados diante de Deus e os coloca debaixo de uma sentença de condenação. Um dos méritos da Teologia da Crise é que ela chama de novo a atenção para a gravidade do pecado como revolta contra Deus, como uma revolucionária tentativa de ser como
2. CLASSIFICAÇÃO DOS PECADOS FATUAIS. É impossível dar uma classificação uns e compreensiva dos pecados fatuais. Eles variam em grau e em espécie, e podem ser diferenciados segundo mais de um ponto de vista. Os católicos romanos fazem a conhecida distinção entre pecados veniais e pecados mortais, mas admitem que é extremamente difícil e perigoso decidir se um pecado é mortal ou venial. Eles foram levados a essa distinção pela afirmação de Paulo em Gl 5.21, de que “não herdarão o reino de Deus os que tais cousas (enumeradas pelo apóstolo) praticam”. A pessoa comete um pecado mortal quando viola voluntariamente a lei de Deus em matéria que ela acredita ou sabe que é importante. Isso torna o pecador passível de castigo eterno. E a pessoa comete pecado venial quando transgride a lei de Deus em matéria de importância não grave, ou quando a transgressão não é inteiramente voluntária. Tal pecado é perdoado com maior facilidade, e até mesmo sem confissão. O perdão pelos pecados mortais só pode ser obtido pelo sacramento da penitência. A distinção não é bíblica, pois, de acordo com a Escritura, todo pecado é essencialmente anomia falta de retidão; falta de obediência à lei), e merece punição eterna. Além disso, tem efeito deletério na vida pratica, desde que gera um sentimento de incerteza, às vezes um sentimento de medo mórbido, por um lado, ou de negligencia insegura, por outro. A Bíblia não distingue diferentes tipos de pecados, especialmente com relação aos diferentes graus de culpa ligada a eles. O Velho Testamento faz uma importante distinção entre pecados cometidos atrevidamente (“`a mão levantada”), e pecados cometidos sem premeditação, isto é, como resultado de ignorância, fraqueza ou erro, Nm 15.29-31. Os primeiros não podiam ser expiados por sacrifícios e eram punidos com grande severidade, enquanto que os últimos podiam ser expiados sacrificialmente e eram punidos com muito maior brandura. O princípio fundamental encarnado nessa distinção ainda é aplicável. Os pecados cometidos de propósito, com plena consciência do mal envolvido, e com deliberação, são maiores e mais condenáveis do que os pecados resultantes de ignorância, de uma concepção errônea das coisas, ou da fraqueza de caráter. Não obstante, estes também são pecados reais e tornam a pessoa culpada aos olhos de Deus, Gl 6.1; Ef 4.18; 1 Tm 1.13; 5.24. O Novo Testamento nos ensina com maior clareza que o grau do pecado é em grande medida determinado pelo grau de luz que o pecador possua. Os pagãos são deveras culpados, mas os que têm a revelação de Deus e gozam os privilégios do ministério do Evangelho são muito mais culpados. Mt 10.15; Lc 12.47, 48; 23.34; Jo 19.11; At 17.30; Rm 1.32; 2.12; 1 Tm 1.13, 15, 16.
3. O PECADO IMPERDOÁVEL. Diversas passagens da Escritura falam de um pecado que não pode ser perdoado, após o qual é impossível a mudança do coração e pelo qual não é necessário orar. É geralmente conhecido como pecado ou blasfêmia contra o Espírito Santo. O objetiva como subjetivamente, a graça e a gloria de Deus em Cristo. A raiz desse pecado é o consciente e deliberado ódio a Deus e a tudo quanto se reconhece como divino. É imperdoável, não porque a sua culpa transcende os méritos de Cristo, ou porque o pecador esteja fora do alcance do poder renovador do Espírito Santo, mas, sim porque há também no mundo de pecado certas leis e ordenanças estabelecidas por Deus e por Ele mantidas. E, no caso desse pecado particular, a lei é que ele exclui toda a possibilidade de arrependimento, cauteriza a consciência, endurece o pecador e, assim, torna imperdoável o pecado. Daí, nos que cometeram esse pecado podemos esperar ver um pronunciado ódio a Deus, uma atitude desafiadora para com Ele e para com tudo quanto é divino, um prazer em ridicularizar e difamar aquilo que é santo, e um desinteresse absoluto quanto ao bem-estar da alma e à vida futura. Em vista do fato de que esse pecado não é seguido pelo arrependimento, podemos estar razoavelmente seguros de que os que receiam havê-lo cometido e se preocupam com isso, e desejam as orações doutras pessoas por eles, não o cometeram.
c. Observações sobre as passagens das epístolas que falam disto. Exceto nos evangelhos, esse pecado não é mencionado nominalmente na Bíblia. Assim, surge a questão, se as passagens de Hb 6.4-6; 10.26, 27, 29 e 1 Jo 5.16 também se referem a ele. Pois bem, é mais que evidente que elas falam de um pecado imperdoável; e porque Jesus diz em Mt 12.31, “por isso vos declaro: Todo pecado e blasfêmia serão perdoados aos homens, mas a blasfêmia contra o Espírito Santo não ser perdoada”, indicando com isso que só existe um pecado imperdoável, simplesmente razoável pensar que essas passagens se referem ao mesmo pecado. Deve-se notar, porém, que Hebreus 6 fala de uma forma específica desse pecado, forma que só poderia ocorrer na era apostólica, quando o Espírito se revelava com dons e poderes extraordinários. O fato de que nem sempre se teve isto em mente, muitas vezes levou à errônea opinião de que esta passagem, com as suas expressões desusadamente fortes, refere-se a pessoas que de fato foram regeneradas pelo Espírito de Deus. Mas, embora Hb 6.4-6 fale de experiências que transcendem as da fé temporal e comum, não atestam necessariamente a presença da graça regeneradora no coração.
Mas a Bíblia ignora esta exceção. Ela nos faz sabedores da penalidade constante da ameaça, que é a morte no sentido compreensivo da palavra, e nos informa que a morte entrou no mundo por meio do pecado (Rm 5.12), e que o salário do pecado é a morte (Rm6.23). A penalidade do pecado certamente inclui a morte física, mas inclui muito mais que isso. Fazendo a distinção a que estamos acostumados, podemos dizer que ela inclui os seguintes
1. MORTE ESPIRITUAL. Há uma profunda verdade no pronunciamento de Agostinho de que o pecado também é punição do pecado. Significa que o estado e a condição pecaminosos em que o homem nasce, por natureza fazem parte da penalidade do pecado. São, é certo, as consequências imediatas do pecado, mas também fazem parte da penalidade ameaçada. O pecado separa de Deus o homem, e isso quer dize r morte, pois é só na comunhão com o Deus vivo que o homem pode viver de verdade. No estado de morte, que resultou da entrada do pecado no mundo, levamos o fardo da culpa do pecado, culpa que só pode ser removida pela obra redentora de Jesus Cristo. Portanto, estamos obrigados a padecer os sofrimentos resultantes transgressão da lei. O homem natural carrega para onde vai o senso da sujeição à punição. A consciência constantemente o faz lembrar-se da sua culpa, e com frequência o temor da punição enche o seu coração. A morte espiritual significa, não somente culpa, mas também corrupção. O pecado é sempre uma influência corruptora na vida, e isso é parte da nossa morte. Por natureza somos, não somente injustos aos olhos de Deus, mas também impuros. Esta impureza se manifesta em nossos pensamentos, em nossas palavras e em nossas orações. É sempre ativa dentro de nós, agindo como uma fonte envenenada a poluir as correntes da vida. E se não fosse a influência restringente da graça comum de Deus, tornaria a vida social inteiramente impossível.
2. OS SOFRIMENTOS DA VIDA. Os sofrimentos da vida, que resultam da entrada do pecado no mundo, também estão incluídos na penalidade do pecado. O pecado produziu distúrbios em todos os aspectos da vida do homem. Sua vida física caiu presa de fraquezas e doenças, que redundam em desconfortos e, muitas vezes, em penosas agonias; e sua vida mental ficou sujeita a perturbações angustiantes, que muitas vezes o privam da alegria de viver, desqualificam-no para o seu labor diário e, por vezes, destroem por completo o seu equilíbrio mental. Sua própria alma veio a ser um campo de batalha de pensamentos, paixões e desejos conflitantes. A vontade se recusa a seguir o julgamento do intelecto, e as paixões se mantinham, sem o controle de uma vontade inteligente. A verdadeira harmonia da vida se acha num estado de dissolução que frequentemente leva consigo os sofrimentos mais pungentes. E não só isso, mas, com o homem e por causa dele, toda a criação ficou sujeita à vaidade e à escravidão da corrupção. Especialmente os evolucionistas nos ensinaram a ver a natureza “rubra (de sangue) nas garras e nos dentes”. Muitas vezes as forças destruidoras são liberadas causando terremotos, ciclones, tornados, erupções vulcânicas e inundações que trazem indescritível miséria à humanidade. Pois bem, há muitos, principalmente em nossos dias, que não veem a mão de Deus nisso tudo e não fatos: consideram essas calamidades como parte da penalidade do pecado. E, todavia, é exatamente o que elas são, num sentido geral. Contudo, não será seguro particularizar e interpreta-las como punições especiais por graves pecados cometidos pelos que vivem nas áreas atingidas. Tampouco será prudente ridicularizar a ideia de que essa relação existiu no caso das cidades da planície (Sodoma e Gomorra), que foram destruídas pelo fogo do céu. Devemos ter sempre em mente que há uma responsabilidade coletiva, e que sempre há motivos suficientes para Deus visitar cidades, regiões ou países com calamidades medonhas. Antes é de se admirar que não os visite mais vezes em Sua ira e em Seu severo desprazer. É bom ter sempre em mente o que Jesus disse uma vez aos judeus que Lhe trouxeram informações sobre uma calamidade que sobreviera a certos galileus, e evidentemente insinuaram que aqueles galileus deviam ter sido grandes pecadores: “Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem padecido estas coisas? Não eram, eu vo-lo afirmo; se, porém, não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis. Ou cuidais que aqueles dezoito, sobre os quais desabou a torre de Siloé e os matou, eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não eram, eu vo-lo afirmo; mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis” (Lc 13.2-5).
3. MORTE FÍSICA. A separação de corpo e alma também faz parte da penalidade do pecado. Que o Senhor tinha isto em mente também na penalidade ameaçada é mais que evidente na explicação dele feita com as palavras “tu és pó e ao pó tornares”. Gn 3.19. Também transparece na argumentação de Paulo em Rm 5.12-21 e em 1 Co 15.12-23. A posição da igreja sempre foi que a morte, no pleno sentido da palavra, inclusa a morte física, não somente consequência, mas também, penalidade do pecado. O salário do pecado é a morte. O pelagianismo negou esta relação, mas o Sínodo geral Norte-africano de Cartago (418) pronunciou um anátema contra quem quer que diga “que Adão, o primeiro homem, foi criado mortal, de maneira que, pecasse ou não, morreria, não como salário do pecado, mas por necessidade da natureza”. Os socinianos e os racionalistas deram continuidade ao erro pelagiano, e mesmo em tempos mais recentes este erro foi reproduzido nos sistemas daqueles teólogos Kantinianos, helegianos ou ritschlianos que virtualmente fazem do pecado uma força necessária ao desenvolvimento moral e espiritual do homem. Suas opiniões encontram apoio na ciência natural dos dias atuais, que considera a morte física um fenômeno natural do organismo humano. A natureza física do homem é tal, que ele morre necessariamente. Mas esta ideia não se faz recomendável, em vista do fato de que o organismo físico do homem se renova a cada sete anos, e de que relativamente são poucas as pessoas que morrem em idade provecta e por exaustão total. Em número muitíssimo maior, morrem em resultado de doença ou acidente. A ideia é contrária também ao fato de que o homem não sente que a morte é uma coisa natural, mas a teme como uma antinatural separação de coisas que se pertencem mutuamente.
4. MORTE ETERNA. Esta pode ser considerada como a culminância e a consumação da morte espiritual. As restrições do presente desaparecem, e a corrupção do pecado tem a sua obra completa. O peso total da ira de Deus desce sobre os condenados, e isto significa morte no sentido mais terrível da palavra. A condenação eterna deles é levada a corresponder ao estado interno das suas ímpias almas. Angustias de consciência e sofrimentos físicos. E “a fumaça do seu tormento soube pelos séculos dos séculos” (Ap 14.11). A consideração mais ampla deste assunto pertence à escatologia.
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